sábado, 26 de março de 2011

Poderá a cultura estreitar a diferença entre o homem e o animal?

         Será a cultura intrínseca ao homem, ou poderá ser alargada à escala animal? Esta questão tem sido analisada no seio da etologia e antropologia. Neste ensaio tenho como objectivo procurar analisar até que ponto é legítimo falar-se de cultura nos animais e, até que ponto esse reconhecimento serve para reabilitar o estatuto dos animais face ao ser humano. Tendo como referência a teoria de Dominique Lestel, filósofo e etólogo, que considera ser necessário analisar o fenómeno cultural, não pela vontade de separar o que é próprio dos homens, mas antes analisá-lo a partir de uma perspectiva evolucionista e pluralista, torna-se necessário perceber qual ou quais os pontos em comum que a definição de cultura abarca quer no homem quer no animal.
Cicero, no séc. I a.C., refere-se à cultura como a tarefa de desenvolver-se para a humanidade, tendo esta definição três conotações distintas: aquilo que faz com que o homem seja um homem; a preocupação do homem pelo homem no sentido da sua mútua vinculação; aquilo pelo qual o homem se torna verdadeiramente homem, a sua formação ou educação, a paideia. A cultura era identificada com o espírito (anima), seria a acção que o homem exerce sobre o meio ou em si mesmo, fruto duma interpretação pessoal e coerente da realidade, visando o seu aperfeiçoamento. No renascimento, a expressão cultura como anima é referida essencialmente como meio ou instrumento principal das literaturas, humanidades e letras. Em 1871, com E. B. Tylor, um evolucionista cultural, a expressão cultura atinge uma universalização. Baseado nas teorias evolucionárias de Charles Darwin, reintroduziu o termo de anima no senso comum. Hoje em dia a compreensão de cultura engloba a formação do homem como homem, ou seja, a educação das suas faculdades, sejam elas intelectuais, morais ou religiosas, designa também o conjunto de meios para actualizar ou realizar as potencialidades humanas, e identifica-se com um significado etnológico-etnográfico, ou seja, é um «conjunto de atributos e de produtos das sociedades e do género humano, por conseguinte, extra-somáticos e transmissíveis por meios diferentes da hereditariedade biológica e que faltam essencialmente nas espécies sub-humanas quando são características da espécie humana, enquanto esta se agrega em sociedades», (Kluckhohn, in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 580). A cultura está também relacionada com factores e condições em que se pode afirmar o homem como um ser criador de cultura. A sua qualidade de homofaber, um ser criador, dotado de um psiquismo superior ao psiquismo animal mais elevado, faz com o homem se revele como inventivo nos mais diversos domínios: tecnológicos, científicos, artístico, literário, filosófico e religioso, ou seja, um ser dotado de desejos e aspirações, que sente a necessidade de se exprimir. Esta noção surge da ruptura entre natureza e cultura, e que dá lugar à expansão de múltiplas formas de civilizações. Devido a este desvio, a cultura acabou por designar um conjunto de normas colectivas, mas também a valorização individual que distingue um indivíduo dos seus semelhantes. Neste sentido, a cultura identifica-se igualmente com os meios, isto é, os instrumentos, costumes e instituições dos grupos sociais, ou o uso de tais meios.
Na antropologia contemporânea a cultura assimila-se com a forma de sociabilidade que se encontra no homem. Os primatólogos «definem um comportamento cultural como um comportamento que não é determinado nem pela genética nem pelas características do ambiente em que o animal vive, e que se dissemina por transmissão social» (Lestel, 2006, 8-9). Para um antropólogo, um comportamento cultural não é estabelecido por causas mas sim por razões, característica que também os etólogos partilham. Quer nuns, quer noutros, uma cultura tem de implicar sempre um sujeito. Lestel insere-se nesta linha de pensamento, «não existe cultura sem sujeito». Assim, para poder sustentar a sua teoria – que considera ser necessário analisar o fenómeno cultural, não pela vontade de separar o que é próprio dos homens, mas antes analisá-lo a partir de uma perspectiva evolucionista e pluralista – tem de reconhecer que certos animais são detentores de subjectividade, de consciência de si. Desta forma, torna-se necessário fazer uma análise do que significa ser sujeito.
Antes de se referir a um indivíduo real, o termo sujeito correspondia filosoficamente a preocupações lógicas que tentavam definir os critérios formais de um discurso verdadeiro. Em Aristóteles, o termo sujeito expressa um valor mormente lógico e metafísico. Na lógica, o sujeito refere-se e opõe-se ao predicado ou atributo. Na metafísica, o sujeito é ambíguo, na medida em que tanto pode significar a matéria indeterminada como o ser determinado. Neste sentido, o sujeito expressa o suporte, o substrato integral e relativamente permanente que relaciona e unifica as qualidades sucessivas que o dispersam pelo espaço e tempo. Até à idade Moderna a conotação de sujeito esteve sempre relacionado com o valor substancial, ou seja, sujeito corresponde a: substância, essência, hipótese, etc. Assim, na escolástica, o termo subjectivo significava o ser que existe por si, independente do pensamento, o ser que de facto pertence às coisas, enquanto o ser objectivo significa aquilo que subsiste apenas no pensamento com uma existência apenas ideal ou intencional. Esta concepção chegou até Descartes, que a via da mesma forma. Embora, com Descartes se dê uma evolução histórica do termo sujeito, que passará a englobar tudo o que o pensamento moderno designa por subjectividade. De sujeito-abstracto do enunciado, passa a sujeito do princípio e causa da enunciação. O sujeito que pensa é o único que se reconhece como existente, capaz de tomar acções a partir de si mesmo, firmando desta forma uma união necessária entre a existência e a subjectividade do “eu”. A partir deste momento, o sujeito é consciência pensante, por oposição ao objecto, que é realidade em si independente do cogito. Esta derivação do conceito de sujeito, de subjectivo para subjectividade, teve o seu ponto crucial na filosofia kantiana e no idealismo posterior. De Descartes a Husserl, passando por Kant o idealismo moderno formou-se a partir da análise das condições de possibilidade da função do sujeito.
Já vimos o que poderá ser cultura e a sua evolução histórica. Que esta não pode ser desprovida de um sujeito. Assim, está lançado o ponto de partida para a análise da hipótese de os animais serem detentores de comportamentos culturais. É necessário analisar se os animais têm algum tipo de inteligência e subjectividade. Em Descartes, no fundo o propulsor da subjectividade, o animal é uma espécie de robot autómato, que não tem capacidades de atingir uma subjectividade. Kant afirmava que os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para um fim. Ora, o quadro estabelecido por Charles Darwin sobre a evolução progressiva, comparada entre as espécies animais ditas inferiores e os primatas, serviu e continua a servir de ponto de referência para discutir a questão da inteligência animal. Autores como Merleau Ponty, Donald Griffin e Jacques Vauclair não vêm qualquer problema em admitir que os animais, tal como os homens, também são seres com inteligência e com subjectividade, com uma vida mental, obviamente à sua escala. Em Dominique Lestel encontra-se uma defesa mais vinculada da ideia de que não é só a humanidade que merece ser considerada sujeito e produtora de cultura. 
Lestel, no prefácio do seu livro As Origens Animais da Cultura, defende a ideia que a etologia contemporânea efectivou uma grande revolução, que se equivale às revoluções na física quântica e na biologia molecular. Contudo o seu alcance ainda não foi totalmente percebido pelos etólogos. É aquilo que designa por «a revolução esquecida da etologia contemporânea» (Lestel, 2006, 9). As representações clássicas do animal já não são sustentáveis na medida em que a oposição entre natureza e cultura deixou de ser suficiente para explicar a diferença que separa o homem do animal. A partir da reavaliação que faz das noções de utensílio, de comunicação e racionalidade, aliado à análise que faz do comportamento de certas espécies de animais, Dominique Lestel apercebe-se que estes também têm capacidade de comportamentos culturais. Isto determina que os comportamentos culturais não são exclusivos do homem, não constituem uma ruptura exclusiva do ser humano mas emergem progressivamente na história do ser vivo. Reconhece que actualmente ainda não admitimos que o animal tem cultura, apenas se estuda o que levou o homem a tornar-se um ser cultural, ou seja, “como o homem se tornou homem”. Lestel define a cultura como um fenómeno que é inerente ao ser vivo, aos seus comportamentos, e que o desenvolvimento destes comportamentos é o que possibilitou que um sujeito emergisse da animalidade. Desta forma, a cultura não pode ser vista como oposta à natureza, mas sim como uma pluralidade que se encontra em diversas criaturas de espécies muito diferentes. A ideia de que existem animais, como os golfinhos, aves, macacos e chimpanzés com comportamentos culturais não é nova, no último século muitos etólogos já o admitiam, contudo, em que medida serão estas “culturas animais” semelhantes à do homem?
No seio da etologia os animais foram sempre analisados e observados tendo por princípio os factores behavioristas. Só mais recentemente, com a emergência da ecologia comportamental e os longos estudos efectuados no terreno é que se começou a mudar de paradigma. Isto possibilitou verificar uma variação de comportamentos livres no animal. A partir daqui, Lestel admite que surge uma nova ideia, de que a razão começa a substituir as causas na organização comportamental do animal. É possível verificar-se a manifestação da subjectividade dos animais com o uso dos utensílios, a que o autor chama “mediação da acção”. Utiliza esta designação porque o termo utensílios lhe parece confuso e pouco operacional em etologia. A mediação da acção consiste «nos suportes ecológicos que permitem ao animal transformar os seus desempenhos e as suas competências ao alterar a natureza do seu desenrolar, ou ao alargar o seu campo de acção» (Lestel, 2006). Ou seja, não é mais que os meios para o animal aperfeiçoar a sua acção sobre o mundo. É desta forma, através dos estudos das variações comportamentais, que os etólogos começam a interrogar-se se os animais não teriam cultura. Para os antropólogos apenas o homem tem cultura, porque apenas este possui uma complexa comunicação de linguagem. Ademais, apenas é legítimo falar de cultura numa sociedade de sujeitos, e como os animais não têm sujeito não se lhes pode atribuir cultura. Face a estes argumentos Lestel tem a necessidade de mostrar até que ponto os animais também podem atingir uma complexidade de comunicação e que a estes também se lhes pode atribuir a designação de sujeito.
Começa por distinguir uma racionalidade instrumental de uma racionalidade expressiva no animal. Isto para demonstrar que o animal quando comunica nem sempre o faz de forma instrumental (comunicar uma mensagem), pode o animal também expressar-se (exprimir um “Eu”)? Alguns estudos sugerem que sim, como por exemplo, o canto de certos pássaros. Este facto contribui para também ele denunciar uma subjectividade nos animais. Como já referi anteriormente, que Lestel admite que a razão começa a substituir as causas na organização comportamental do animal, este facto insere-se perfeitamente na sua definição de sujeito, que não é mais do que; «todo o animal que se comporta em função da razão das suas escolhas, das suas interpretações e não somente em função de causas mecânicas» (Lestel, 2006). Desta forma, pode-se falar de sujeito em certos animais, como por exemplo, os chimpanzés, através da verificação da mediação da acção nos seus comportamentos. Assim, o animal passa a ser um sujeito de cultura quando há variação comportamental de seres da mesma espécie no mesmo habitat. Se no mesmo espaço, membros da mesma espécie e geneticamente iguais, se verificar que há um determinado grupo que evolui, então pode-se falar em cultura. Dominique Lestel não é o único a pensar desta forma, autores como; Jacob von Uexküll, Frederick Buytendijk, Adolf Portmann e Hans Jonas, de inspiração fenomenológica, também compartilham a ideia de que o animal pode ser um sujeito. Uma vez que o fenómeno cultural é visto como um fenómeno de individualização e de complexidade comportamental progressiva, de que a cultura humana constitui um caso particular.
De tudo que acabou de ser exposto, é possível agora responder à pergunta formulada no início do ensaio. Quer Lestel, quer outros autores mencionados, demonstram que de facto a cultura poderá não ser uma propriedade restrita apenas à humanidade, todavia, é necessário que se definam outros factores fundamentais para se poder ver num animal um “sujeito de cultura”. Porque parece-me que Lestel faz um uso abusivo daquilo que, quer cultura quer sujeito significam e englobam. Como ficou demonstrado no início do ensaio, cultura e sujeito significam muito mais que aquilo que Lestel sustenta. Ele apenas faz uso de uma parte da definição para sustentar a sua teoria, fazendo uma adaptação abusiva. É claro que este é um tema ainda em aberto cuja discussão poderá ainda estar no início, mas torna-se necessário que no futuro uma proposta de “cultura animal” seja mais abrangente. Contudo, julgo que o grande mérito de Lestel passa pelo facto de ter conseguido dar mais um contributo para estreitar a dicotomia entre o homem e o animal. 

Ricardo Carvalho

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