terça-feira, 14 de agosto de 2012

Hobbes e o Grande Leviatã


            A filosofia política consiste na reflexão filosófica acerca da forma como devemos organizar as nossas vidas coletivamente ou em sociedade. Algumas das preocupações centrais da filosofia política prendem-se com questões de análise e investigação de temas como; qual a legitimação para o Estado? Como devem ser distribuídos os bens materiais? O que justifica a posse de riqueza? Que direitos, deveres e liberdades devem os indivíduos gozar? Quem deve deter o poder político? Que tipo de justiça deve existir?
            Estas problemáticas começaram a ser pensadas desde a antiguidade, Platão, Aristóteles e Santo Agostinho, foram alguns dos filósofos que refletiram sobre o Estado e a vida em sociedade. Até à modernidade, a conceção jusnaturalista realista clássica, da tradição aristotélica, era predominante no paradigma da filosofia política, com a modernidade surge um novo paradigma, a conceção jusnaturalista racionalista[1]. As principais diferenças entre uma e outra conceção dizem respeito sobretudo à questão da fundamentação e criação do Estado. A doutrina tradicional aristotélica sustenta a criação do Estado num fator histórico, na família, o Estado surge como complemento do homem natural, é uma teoria naturalista, tem a família como o princípio das sociedades e do poder político. Ao passo que as teorias jusnaturalistas modernas têm uma conceção racionalista da origem do Estado. O Estado é visto como o oposto ao estado natural, o poder político é fundamentado em teorias contratualistas, a legitimação deste poder adquire-se por consenso, é uma doutrina que tem o indivíduo como princípio.     
            As teorias do contrato social surgem na Europa como resposta ao direito divino dos monarcas que caracterizou a idade média. No direito divino, a autoridade política estaria legitimada por vontade divina. Os Reis seriam os descendentes de Deus na terra, e governariam de acordo com os desígnios de Deus, facto que lhes concedia legitimidade para deter um poder absoluto. Numa teoria do contrato social a autoridade política é produto de um contrato entre indivíduos e não da vontade divina. As primeiras teorias contratualistas da idade moderna estavam simplesmente preocupadas com esta autoridade política (e não com a justiça) e forneceram uma justificação para a origem e legitimidade da autoridade política diferente do direito divino.
            A soberania é o poder máximo do Estado civil e é a fonte da lei. Nas teorias do contrato social, para compreendermos de que forma se justifica a passagem do estado de natureza ao Estado civil, temos de pensar como seria a vida dos indivíduos sem o Estado civil. Esse estado sem ordem, sem autonomia política é o que se designa por estado de natureza. Como não se pode abolir o Estado civil, apenas se pode imaginar o estado de natureza e a forma como os indivíduos viveriam nesse estado recorrendo a uma experiência mental, a uma abstração. Deste ponto de vista, quando imaginativamente nos situamos no estado de natureza é-nos possível pensar o que justifica o estado e que tipo de autoridade política se pretende que exista, assim como as motivações que nos conduzem a realizar um contrato. Embora apenas por abstração se possa chegar ao estado de natureza, é bem possível que ele tenha efetivamente existido numa fase pré-histórica. Thomas Hobbes foi um dos grandes autores do contratualismo (contratualismo clássico) visto desta forma.
            Hobbes nasceu a 5 de abril de 1588 e a história do seu nascimento – que gostava de a repetir constantemente – pode ter tido uma influência determinante no seu pensamento, contava Hobbes que a sua mãe entrou em trabalho de parto aquando do seu nascimento quando ouviu o rumor de que a Armada Espanhola entrara na cidade, “de modo que o medo e eu, como gêmeos, nascemos juntos”, afirmava ele. Hobbes publicou a sua principal obra, Leviatã[2], em 1651, pouco após o termo da primeira guerra civil inglesa, fator que terá tido influência fundamental na composição da obra[3]. Leviatã caracteriza a multidão popular, submetida ao poder soberano. A obra divide-se em 4 partes; Do homem; Da natureza da sociedade civil; Da sociedade cristã; Do reino das trevas. Na primeira parte da obra Hobbes expõe a sua teoria política, na segunda metade redige uma crítica à Igreja, à política eclesiástica. 
            Hobbes concebe a sua filosofia política a partir de uma visão mecanicista do Universo. O Universo para Hobbes é constituído por corpos em movimento[4], tudo o que sucede é devido ao movimento, e onde há movimento há choque. A Natureza humana corresponde a esta visão mecanicista, o homem é uma grande máquina, que pode ser puramente descrito a partir de leis mecânicas, na introdução refere que a vida não é nada mais que movimento[5].
«Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, porque não poderíamos dizer que todos os autómatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial?» (Hobbes, 2009:23)

            Estado de Natureza
No estado de natureza descreve-se o homem tal como ele seria num estado natural, numa situação de ausência de autoridade. Neste estado Hobbes delineia uma imagem do homem como extremamente anti-social, o seu comportamento é dominado pelas paixões naturais, e guia-se simplesmente pela sua característica instintiva e animal[6]. Sendo racionais, colocam a razão ao serviço dessas paixões, procuram fazer aquilo que lhes apetece. Os homens no estado natural encontram-se num estado de perfeita igualdade, quer quanto às faculdades do corpo como das do espírito. Decorre desta descrição da natureza humana dois princípios, o da diferença e o da razão natural. Do primeiro resulta que a partir da igualdade básica, todos os homens têm um direito básico a todas as coisas, movidos pelas paixões, desejam fazer das coisas sua posse, todos os homens mantêm uma esperança de obter os mesmos fins. Na condição natural os homens caracterizam-se pelo individualismo, daqui resulta que quando dois indivíduos desejam a mesma, e que ela não pode ser fruída por ambos – Hobbes postula que no estado de natureza há escassez de bens – convertem-se em inimigos. Do segundo resulta que sendo o homem racional deseja evitar a morte, todos os homens aspiram a preservar a vida, e podem usar todos os meios para o fazer. No estado natural o homem possui um direito natural, esse direito consiste na liberdade que cada um tem para usar a força necessária para garantir a sua conservação, este direito é total e estende-se a tudo. Há também, no estado de natureza, uma lei natural que interdita os indivíduos de destruírem-se a si mesmos ou a não se defenderem.  
Os homens no estado natural viviam constantemente com medo da morte (este é um dos fatores que os conduziu ao Estado), e o medo torna-os hostis. Os seres humanos possuem um desejo insaciável de Poder, e Hobbes aponta três causas principais para as discórdias no estado de natureza na busca desse Poder; a competição, a desconfiança e a glória. A competição leva os homens a atacarem-se uns aos outros para obterem lucros, ou seja, para obterem o que não possuem e desejam possuir, e isso leva-os à violência. A desconfiança prende-se com o facto de os homens quererem viver bem, em segurança, de forma a garantir a sua preservação. Todos os homens visão também a glória, a reputação ou a fama. É desta forma que os homens mostram o seu Poder. Derivado a estas discórdias, o homem no seu estado natural vive constantemente num estado de insegurança, na imanência da traição e da perseguição, têm de estar constantemente em alerta, e como cada indivíduo possui um desejo interminável de adquirir mais e mais e contendo todos uma igualdade básica, esse desejo só termina com a morte[7]. Por todos estes motivos, Hobbes define o estado de natureza como um estado de guerra, há uma guerra de todos contra todos, não há uma guerra real no sentido de luta, mas sim uma disposição constante para a guerra. Hobbes no estado de natureza definiu o homem como o lobo do homem. O estado natural dos seres humanos quando em liberdade é de guerra perpétua, “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta” (Hobbes, 2009:111)  

Num tal estado, não poderá haver condições para atividades sociais, como a indústria, o comércio, navegação, nem letras, nem propriedade, etc., em suma não pode existir sociedade. Apesar do homem ser retratado com uma imagem bastante nociva no estado de natureza, nada se lhe pode apontar moralmente, não há bem nem mal, porque, segundo Hobbes, no estado de natureza não há moralidade, não há justiça, porque para haver injustiça teria de haver uma violação da lei, mas não existem leis se ninguém as fizer e se não existir quem as faça cumprir, logo, não pode haver noções de certo ou errado, não se aplicam os preceitos morais.
Para Hobbes, o homem no seu estado natural é um predador e a sua única preocupação é defender os seus interesses. Hobbes em termos éticos é um egoísta e, a única motivação possível face à natureza dos homens é maximizar o seu próprio prazer[8]. Perante este cenário de guerra e de incerteza perturbadora, o homem tem necessidade de encontrar um caminho para a paz, para a salvação, que consiste em abandonar o estado de natureza. Os homens, através de algumas das suas paixões e da razão, tendem para a paz. Algumas das suas paixões, como o medo da morte, o desejo de preservar a sua subsistência, de ter uma vida melhor e uma vida mais segura, levam-no a procurar a paz. A razão proporciona-lhe os preceitos para o conseguir, o homem pelo uso da razão consegue encontrar normas para obter a paz e entrar em acordo com os outros homens, e essas normas são aquilo a que Hobbes chama leis da natureza[9]. As leis da natureza surgem no pensamento hobbesiano como postulados da justiça, da equidade, da temperança, da compaixão, etc. E estes postulados são o oposto das paixões naturais humanas, que fazem o homem tender para o egoísmo, para a soberba, a vingança, a parcialidade, etc.
São várias as leis da natureza, Hobbes indica dezanove, mas a lei fundamental da natureza define o seguinte princípio:
«Que todo o homem se deve esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra» (Hobbes, 2009:116)

A procura da paz corresponde à primeira das leis da natureza, o recurso à guerra corresponde ao direito de natureza, i.e., o homem poder-se defender de todas as formas que puder. A segunda lei da natureza segue-se da primeira, ou seja, se os homens procuram a paz e a sua auto-preservação, então devem estar determinados a abandonar o seu direito sobre todas as coisas, na medida em que os outros também o façam:
 «Que um homem concorde, quando os outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar ao seu direito sobre todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo» (Hobbes, 2009:116)
 
Depois de os homens consumarem a segunda lei da natureza, que consiste num pacto celebrado entre os homens a fim de transferirem os direitos que a serem preservados não permitiriam a paz, segue-se que tem de existir uma norma que faça cumprir esse preceito, caso contrário, essas pactos não teriam qualquer legitimidade, é a terceira lei da natureza:
 «Que os homens cumpram os pactos que celebrarem» (Hobbes, 2009:125)
É a partir desta lei da natureza que nasce a justiça. Se não houver cedências, todos têm direito a tudo, logo, os conceitos de justiça e injustiça não podem ser aplicados, não existem. Só quando existem pactos é que se pode começar a falar em injustiça, que consiste no incumprimento desses pactos. A natureza da justiça por sua vez consiste no cumprimento dos pactos válidos. Esta é a lei que vai estar na base da criação e justificação do Estado, porque não basta existir uma lei que ordene os homens a cumprirem os pactos, é preciso também alguém que as faça cumprir “mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto” (Hobbes, 2009: 125), é necessário um poder executivo e coercivo, e este poder só pode existir com a criação do Estado. Estas são as três principais leis da natureza. As restantes leis dizem respeito a questões como a gratidão, complacência, remitência, orgulho, arrogância, equidade, primogenitura, ao juiz em causa própria e da parcialidade. Hobbes resume o compêndio das leis da natureza num aforismo simples; “Faz aos outros o que queres que te façam a ti” (Hobbes, 2009: 116). Assim, para Hobbes, são as leis da natureza que determinam a possibilidade da coexistência dos homens em paz, são elas que tendem para a segurança e preservação da vida humana, por isso torna-se imperioso o seu cumprimento (origem do Estado). O estado surge assim como resultado da própria lei natural.

            Contrato Social
Sendo Hobbes um contratualista, a passagem de um estado de natureza para um Estado civil, faz-se através de convenções, realizadas por atos voluntários e livres dos indivíduos. Como deve ser feito um contrato social que consiga conter a natureza do homem e tornar um Estado civil possível? Tendo em conta a natureza do homem a única forma de estabelecer um contrato social consiste num conjunto de pactos entre todos os homens, que permita a instituição de um poder comum, i.e., o Estado. Os indivíduos entre si celebram um pacto no qual aceitam e concordam sair do seu estado natural, para passarem a um estado artificial, o Estado civil. Para Hobbes os pactos[10] são uma forma de contrato, que consiste na transferência de direitos a terceiros, em troca de determinados benefícios recíprocos. O homem cede todos os seus direitos menos um, o direito à vida, que não é alienável. Ao passar do estado de natureza ao Estado civil o direito à vida mantém-se, visto que foi este o principal motivo para a passagem de um Estado a outro, foi a razão do pacto. Todos os outros direitos abdicam-se, caso contrário não se sairia do Estado de natureza. Isto marca a diferença para outros autores contratualistas.
O contrato hobbesiano não diz respeito a nenhuma realidade já existente, não existe ainda sociedade na hora do pacto, é uma situação originária, formulada pelos homens no estado natural. Os homens firmam um contrato entre si estabelecendo nesse momento uma terceira parte a quem entregam os seus poderes, a um soberano. O soberano é fruto das vontades dos indivíduos e surge apenas após o contrato. Este soberano vai ser o garante dos pactos, porque os “pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém” (Hobbes, 2009: 143). Do contrato tem de surgir um poder que seja bastante forte para manter a segurança de cada um, em que todos possam confiar. A única forma que os homens têm para se colocarem em segurança e manterem esse estado é, através do pacto, transferirem o seu poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, de modo a tornarem-no o seu representante comum, de modo a que as suas ações sejam consideradas as ações de todos. Através do acordo os homens formam uma unidade, i.e., conjugam-se todos numa só pessoa. No ato do pacto é como se cada homem dissesse a outro o seguinte:
«Cedo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou assembleia de homens, com a condição de tu transferires para ele o teu direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações» (Hobbes, 2009:146)

É nesta unidade que se consubstancia o Estado, os homens, através da sua livre vontade, estabelecem, por um pacto voluntário firmado entre si, um homem artificial, que será de dimensão maior que a sua e com muito mais poder, é o grande Leviatã, o Deus mortal ao qual os homens devem a sua paz e defesa. Hobbes define o Estado como:
«Uma pessoa de cujo atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar mais conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. (…) Àquele que é portador dessa pessoa chama-se soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súbditos» (Hobbes, 2009:146)

            Estado Civil

O Estado é algo monstruoso, daí Hobbes o comparar ao monstro marinho bíblico Leviatã, uma vez que não existe nenhuma autoridade terreste que se possa comparar a ele. O Estado é monstruoso devido ao seu caráter artificial, quem está na posse do Estado tanto pode ser uma única pessoa como um conjunto de pessoas, e apesar do Estado estar a representar os indivíduos, situa-se acima destes. O Leviatã é o gigante que contém em si a unidade absoluta e o poder soberano. A imponência do Estado advém da necessidade dos homens viverem em liberdade e segurança, para que possa ser possível a sociedade, que apenas surge após a instituição do Estado.
O soberano – seja ele um homem ou um conjunto de homens – tem de ter um poder ilimitado, não pode de forma alguma estar condicionado, uma vez que se ele estiver submetido a alguma limitação quem o julgará no cumprimento das suas obrigações? Para Hobbes o poder do soberano tem de ser absoluto, os cidadãos têm de estar submetidos a este poder totalitário, caso contrário os homens permanentemente cairiam de novo no estado de natureza, e é preferível estar submetido a um soberano absoluto do que viver permanentemente em estado de alerta, de insegurança, de perigo, etc. O soberano é a espada que vai estar sobre os contratos, de modo a garantir a sua observância. Não chega apenas a vontade social, é necessário que esta intenção seja efetivada pelo poder do Estado.
No estado civil o soberano tem todo o poder e tem apenas uma única limitação interna, ou dever para si mesmo, a manutenção da paz. Os súditos não podem julgar as ações do soberano, nada do que o soberano deliberar pode ser punido pelos súbditos. O soberano é o único com o poder necessário para fazer a paz e a guerra como melhor lhe aprouver, é ele quem detém o poder judicial e de punição. O soberano não pode renunciar a nenhum dos seus direitos. A função do soberano recai sobre o fim para o qual foi instituído, em particular a segurança do povo. Os súbditos apenas têm obrigação para com o soberano enquanto, e apenas enquanto, o soberano tiver a capacidade de os proteger. Ao soberano cabe também o dever de instruir o povo acerca dos fundamentos e razões dos seus direitos essenciais.
No Estado civil os súbditos têm de respeitar a soberania e aceitar os pactos. Desta forma, cabe ao soberano os direitos e aos cidadãos os deveres. O soberano exerce o poder através da lei. As leis positivas são leis que os homens estão obrigados a respeitar por serem membros de um Estado. Correspondem às regras que o Estado impõe aos seus súbditos. Apenas o Estado tem legitimidade para fazer leis, o soberano – representante do Estado – é o único legislador. O soberano não se encontra sujeito às leis que delibera, porque não fazia sentido, uma vez que tem o poder de criar e revogar leis sempre que lhe convier, logo, pode-se libertar dessas leis sempre que desejar. A lei positiva e a lei natural contêm-se uma à outra e têm o mesmo fim. Hobbes não concebe a lei positiva e a lei natural como sendo de diferentes espécies, mas apenas como sendo partes diferentes da lei, “uma das quais é escrita chama-se civil, e a outra não é escrita e chama-se natural” (Hobbes, 2009: 219). Apesar disto, a lei positiva tem como incumbência limitar o direito de natureza, ou seja, a liberdade natural do homem, se assim não fosse não seria possível haver paz e os homens não poderiam sair do estado de natureza. No Estado hobbesiano a natureza da lei não se encontra na letra, mas antes no espirito da lei, no seu significado ou intenção (no que o legislador quis dizer), assim, a interpretação das leis cabe ao soberano ou àqueles que o soberano escolher para a interpretarem.
Num tal Estado pode-se perguntar aonde se encontra a liberdade dos indivíduos? Lembrando que no estado de natureza os homens gozavam de uma liberdade total, sem ausência de oposição, em que cada um podia fazer o que a sua vontade determinasse conforme as suas capacidades, porque limitar agora essa liberdade? A resposta de Hobbes é que o homem natural possui a liberdade, mas não a sabe usar. E como o valor supremo do homem não é a liberdade mas sim a vida, ele submete-se à limitação da liberdade em prol da preservação da vida. O homem goza de liberdade no Estado civil na medida em que pode, a qualquer momento, não praticar os atos que por medo da lei pratica. Mas a liberdade encontra-se ligada à necessidade, i.e., os homens não podem querer ser totalmente livres e poder viver em segurança fazendo aquilo que lhes aprouver. Os homens livres tiveram necessariamente de criar um Estado, e desse Estado surgiram laços artificiais, que são os pactos e as leis positivas, e a liberdade dos súbditos resultou desses pactos, mais concretamente na liberdade face a esses pactos;
«Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso a sua própria conservação, criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram laços artificiais, chamados leis civis, os quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam numa das pontas à boca daquele homem ou assembleia de homens a quem confiaram o poder soberano, e na outra ponta aos seus próprios ouvidos» (Hobbes, 2009:176)

            A liberdade real dos súbditos consiste assim naquilo a que Hobbes define como o silêncio da lei, os súbditos têm a liberdade de fazer o que quer que seja que o soberano não tenha regulado por lei. Os homens só podem agir livremente naquilo que a razão de cada um indicar nas ações que a lei não prevê, uma vez que não há nenhum Estado com a capacidade de criar regras suficientes para todas as ações do homem. A liberdade dos súbditos encontra-se por exemplo nos contratos mútuos de compra e venda, em cada um poder escolher a sua habitação, alimentação, profissão, o nome dos filhos, etc. A isto junta-se a liberdade de cada um se poder defender da morte, mesmo que seja o soberano a declarar a morte, este tem a liberdade e o direito de se defender. No Estado civil o súbdito nunca pode revoltar-se contra o soberano. Contudo, se o soberano mandar matar um súbdito, este não pode revoltar-se contra ele, mas pode fugir. É desta forma que Hobbes resolve o conflito, uma vez que por um lado está a obediência ao soberano e, por outro lado, o direito a não abdicar da vida, do direito à vida.
Hobbes também demonstrou uma grande preocupação com o poder eclesiástico, uma vez que considerava o poder eclesiástico muito poderoso, com grande influência nos homens e na vida da sociedade. A religião era encarada como um fator de instabilidade. O Papa era visto como o soberano dos soberanos, e isso tinha grandes repercussões na política do Estado. Então Hobbes entende que esta bipolarização do poder não é compatível com o Estado que delineou, desta forma, o soberano não só era o detentor do poder civil como também deveria deter o poder eclesiástico, ambos deviam estar sobre a alçada do Estado. Um Estado civil pressupõe estabilidade religiosa e essa só se garante com o controlo eclesiástico por parte do soberano[11].  
A ciência política de Hobbes visou oferecer um ambiente favorável para o progresso humano. A natureza do homem é profundamente anti-social e egoísta, com tendência para a discórdia e a individualidade. O homem não pretender viver constantemente em alerta e com o risco permanente de morte. Assim, Hobbes tem defender a existência de um contrato social para preservar a vida do homem e fornecer-lhe uma vida mais segura. Para este contrato social ser necessário, temos de ter um estado de natureza. E o contrato social possibilita o Estado civil e justifica o poder absoluto. Os indivíduos firmam entre si um acordo mútuo que se estabelece com base em regras, leis, normas, valores e motivações que governam o agir e a conduta humana. Em sociedade o homem vive muito melhor que sozinho, porque existe cooperação mútua garantida pelo acordo, que determina que cada um obedece às regras na condição de os outros também o fazerem, e é este aspeto que permitiu a criação da cultura, das escolas, da eletricidade, etc., é este contrato social o fundamento da eticidade. O poder absoluto é legitimado democraticamente, não tem origem em Deus, mas no acordo realizado por todos os indivíduos. Esta é a grande inovação do pensamento de Hobbes, uma vez que foi o primeiro a afirmar que a autoridade resulta, não da igreja, mas de um acordo entre os indivíduos.
A doutrina de Hobbes teve grande influência no século XVIII e também grandes consequências históricas, que se prolongam até aos nossos dias. Na época da publicação de Leviatã a obra originou dois tipos de reação bastante influentes: uma apresentada por Sir Robert Filmer, que tentou preservar o absolutismo monárquico com base no direito divino dos reis; a outra reação que surgiu como resposta a Filmer foi a de John Locke, que sustenta os princípios da liberdade e do parlamentarismo, i.e., os da segunda Revolução Inglesa de 1688.
No meu atender o pensamento de Hobbes falhou, porque apenas adiantava duas possibilidades de escolhas, ou o estado de natureza ou um poder absoluto (a desordem ou a ordem), e hoje não temos nem um nem outro.





[1]Jusnaturalismo é a conceção que afirma a existência do direito natural (ius naturale, ius naturae) como realidade anterior e superior ao direito positivo, i. é, estabelecido pelos homens (ab hominibus institutum, in civitate positum), o único que tem o pleno reconhecimento do positivismo jurídico.” (Enc. Logos, 1999: 90-91) Aristóteles foi o pioneiro no que ao direito natural diz respeito, e posteriormente os estóicos e S. Tomás de Aquino deram contribuições decisivas para o jusnaturalismo realista. O jusnaturalismo racionalista surge com a Escola Moderna do Direito Natural, a partir de H. Gorcio.
[2] O título Leviatã era uma referência ao cap. 41, versículo 25, do livro bíblico de Jó, «leviatã era um monstro marinho descrito pela sua força absoluta e terrificante “sobre a terra, não há quem o domine. Intrépido, ele foi feito”. Tratava-se do Estado tal como descrito por Hobbes, dotado de um poder absoluto mesmo sobre os servos de Deus como Jó.» (Tuck, 1989: 46).
[3] A guerra civil teve grande influência no pensamento de Hobbes, após regressar a solo Inglês, depois de ter estado exilado em França, Hobbes encontrou um país devastado pela guerra e pela anarquia.
[4] Os corpos não estão destinados por nenhum fim (sem teleologia), os corpos estão em constante movimento, é uma visão anti-aristotélica do universo.
[5] Hobbes escreveu numa altura de grandes descobertas científicas (principio da conservação do movimento, Galileu), e tal como Descartes, tinha a pretensão de reduzir tudo à matemática. Os dois filósofos aplicaram os métodos da nova física ao estudo do homem.
[6] O homem apenas se distingue dos restantes animais numa questão de grau.
[7] Os homens no Estado civil continuam a manter os mesmos desejos e tendências, mas como estão submetidos a uma autoridade reprimem esses desejos, mas sempre que caírem em estado de natureza por alguma razão o homem será assim.      
[8] Esta visão da natureza do homem é muito importante porque vai ter repercussões no Estado civil.
[9] Para Hobbes as leis da natureza não são regras morais, mas antes prescrições da razão, uma vez que o cumprimento destas leis é a coisa mais sensata a fazer para preservar a própria vida. A razão para Hobbes é cálculo, ao afirmar que o homem é dotado de razão, está a querer dizer que o homem tem a capacidade para realizar cálculos racionais. A linguagem é o que permite estes cálculos racionais, e a partir da linguagem o homem é capaz de encontrar as formas certas para atingir os fins desejados, e não se deixar guiar apenas pelas paixões, mas seguir também os seus próprios interesses. A razão conduz os homens a atingir os seus objetivos, que em última instância prendem-se com a paz, o progresso e o uso da liberdade.
[10] Um pacto distingue-se das restantes formas de contrato por conter em si um elemento de confiança.
[11] Isto é o contrário do que vai afirmar Locke, que defende uma tolerância religiosa e uma não intervenção do Estado nos assuntos eclesiásticos.


           Ricardo Carvalho