quinta-feira, 14 de abril de 2011

Apanhador de Almas

Desde à muito tempo que subsiste a ideia da possibilidade de se ver transferida toda a informação que um cérebro humano processa e memoriza ao longo da vida, para um suporte não biológico. Existe inclusive um amplo número de programas de investigação a trabalharem nesse sentido. Neste artigo retrata-se um desses programas em particular, levado a efeito por uma das unidades de investigação da British Telecom, designado “Soul Catcher” (cf. Curado, Luz Misteriosa, cap. 7, 2008). O projecto consiste em implementar um micro-chip algures no percurso do nervo óptico, de forma a ser possível monitorizar todos os percursos da informação visual. A monitorização pode alargar-se aos restantes percursos de informação que medeiam entre o cérebro e o corpo, e entre o cérebro e o mundo exterior. O objectivo do micro-chip é o de conseguir um registo completo de todos os pensamentos e sensações experimentadas durante o tempo de vida de um indivíduo.
Outros projectos semelhantes já anteriormente tinham conseguido reconstruir, com a técnica de autoradiografia, as últimas impressões visuais registadas no córtex visual de um macaco. Entre um e outro projecto, graças ao desenvolvimento das técnicas de imagiologia, é possível supor que as reconstruções de impressões subjectivas em módulos diferentes da visão são possíveis em princípio. Com as técnicas EEG (electroencefalografia) é possível identificar a actividade bioeléctrica do cérebro e identificar que, a actividade em bebés de vinte e seis semanas é idêntica à de adultos durante uma pequena parte do dia, nomeadamente nos períodos de REM (é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos. Durante esta fase, os olhos movem-se rapidamente e a actividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado). E se o sono REM está em linha de continuidade com a consciência, então existe uma tecnologia capaz de identificar a presença de períodos REM, logo, é possível parcialmente saber que tipo de consciência está a ocorrer nessa fase. Desta forma poderá afirmar-se que sabemos o que é ser um feto, ou seja, saber o que é ser alguém diferente de si mesmo, «o que sente um bebé é o que sinto em REM». Resulta daqui uma identidade de tipos, ou seja, o meio caminho entre a ignorância sobre a subjectividade de outro ser humano e o conhecimento completo da subjectividade de outro ser humano. Derivará daqui, que em certa medida, a subjectividade foi parcialmente vencida.
Uma identidade deste tipo está obviamente cheia de imperfeições, basta pensar que a actual tecnologia pode vir no futuro a melhorar consideravelmente, e demonstrar que de facto o que se passa num feto de vinte e seis semanas não é o mesmo que se passa num adulto em fase de REM, apesar de parecer semelhante. Mas o importante é que a teoria é pelo menos suficientemente boa para contrariar, em certa medida, os que defendem a impossibilidade de se ter acesso a uma subjectividade diferente da própria.
Uma outra técnica contemporânea que apoia o argumento de se puder conhecer a subjectividade de terceiros, é a técnica de BMI’s. É possível implementar microfibras condutoras e microcircuitos na massa encefálica, de forma a que, sempre que algum neurónio do córtex motor for activado por uma intenção, é possível fazer mover braços mecânicos, outras técnicas semelhantes são os casos de EMG’s e EOG’s.  O interesse destas tecnologias recentes, para a reflexão da consciência, consiste na possibilidade de fazer accionar sistemas exteriores ao corpo humano com o pensamento, visto que uma intenção ou um desejo são eventos mentais tão significativos como o sentimento de si mesmo.
Desta forma um argumento progressivo pode, pois, ser defendido:
1) Se não há nada de substancialmente diferente entre o cérebro e o resto do corpo;
2)se não há nada de substancialmente diferente entre os elementos da vida mental, como memórias, intenções, desejos, conteúdos da consciência, autoconsciência, etc.;
3) e se está demonstrada tecnicamente a possibilidade de visualizar no exterior alguns dos elementos do conjunto de objectos ou eventos da vida mental;
4) segue-se que é muito forte a plausibilidade de encontrar modos tecnológicos de visualizar, aceder ou exteriorizar os outros elementos do conjunto da vida mental. (Curado, Luz Misteriosa, 2008, 133)
As premissas 1 e 2 são de referência fisicalista e fenomenológica. Os argumentos que sustentam a premissa 1 são:
A separação entre cérebro e corpo é uma ficção metodológica inaceitável, quer por razões de fisiologia médica, quer por modelos computacionais.
Se diferença existisse, boa parte da visão científica do mundo estaria errada, e é improvável que isso aconteça.
A premissa 2 é mais complexa, devido à possibilidade de se pensar num sólido de conteúdos conscientes de um nível superior que tivesse como constituintes os sólidos parciais (como demonstra o sólido das cores p. 134). Este sólido dos sólidos conscientes representa todas as experiências subjectivas possíveis de um determinado ser consciente. Thomas Nagel projectou uma fenomenologia objectiva, que consistia em defender um modo de compreender a subjectividade como se esta fosse objectiva e acessível a observadores exteriores ao sujeito das experiências. Vários outros programas do género foram apresentados, mas a todos se lhes colocaram várias reservas, como se os autores considerassem que a ideia de representação objectiva de todas as experiências subjectivas, desempenha-se um papel metodológico.
Um argumento contra as premissas 1 e 2 é o da defesa da falta de continuidade, ou seja, a parte material do mundo ocupada pelo cérebro não tinha continuidade com todas as partes materiais do corpo e com o ambiente, embora, do ponto de vista científico, é inaceitável este ponto de vista, ou seja, como sistema físico, um cérebro compartilha as propriedades físicas fundamentais de qualquer outro sistema físico. Assim, do ponto de vista científico a continuidade da matéria está assegurada, o que não fica assegurado são as propriedades da matéria em causa. Todos os grupos de matéria possuem propriedades físicas diferentes, o que pode levar a pensar na sua descontinuidade, bastaria para isso verificar que um deles possui propriedades mentais, para constituir razão para uma descontinuidade.
A premissa 3 está no princípio da investigação contemporânea. Os relatórios científicos que já foram publicados a seu respeito não foram desmentidos.
Resumindo o que já foi discutido nas 3 premissas, a investigação científica contemporânea dá um apoio forte ao argumento que propõe o cenário de uma tecnologia que permita aceder à vida mental dos seres humanos. Apesar de serem casos diferentes, o que está em causa no apanhador de almas e nas técnicas de imagiologia, possui as mesmas características estruturais que o caso de Ötzi. Pode dar-se o caso de se saber mais sobre um ser humano que de nós mesmos (cf. Curado, Luz Misteriosa, cap. 6, 2008).

           
                        Ricardo Carvalho

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