sábado, 6 de agosto de 2011

Teoria transcendental da existência do outro em Husserl


Husserl ao recorrer ao método da redução eidética, à epoché, sustenta que este não altera a intencionalidade da consciência. O objecto continua a ser algo que é dado à consciência e não uma sua parte integrante, a consciência é uma corrente de experiências vividas. Mas, como tudo que é dado tem de ser dado à consciência, as experiências não são objectos intencionais como as coisas da percepção, são antes vividas de uma forma imediata, original e autêntica, constituindo assim o ser do objecto. Porque este é dado à consciência como algo parcial e singular, a percepção transcendente nunca nos dá a coisa de forma adequada, dá-nos sempre de múltiplas formas. A consciência reúne todos estes esboços e forma uma unidade (percepção imanente), ou seja, pode-se afirmar que a consciência já pressupõe a “tese do mundo”. Desta forma, enquanto consciência pura torna-se a única realidade originária, o verdadeiro estatuto ontológico dos actos intencionais. Não é a consciência que constrói o mundo mas é ela que o constitui a partir da sua intencionalidade. Não é necessária a experiência do mundo para se chegar a auto-evidência das coisas, a experiência surge apenas como uma possibilidade. O mundo objectivo é constituído a partir do meu mundo primordial, ou seja, constitui-se a partir de «uma unidade sintética de um sistema infinito das minhas potencialidades» (Husserl, 2001, 135). Assim, o mundo primordial só pode ser fenómeno do mundo objectivo que já existe e que é uno e idêntico para cada um, incluindo eu.
Mas com a epoché Husserl cria uma solidão, cai num solipsismo difícil de sair, que impossibilita o sujeito de alcançar algo verdadeiro fora de si. Torna-se difícil sustentar o estatuto ontológico do tu e dos «outros». Para sair do solipsismo Husserl tem de reconhecer a existência de um outro ego, ou seja, em mim, ego transcendental, constituem-se transcendentalmente outros egos, que Husserl designa como alter, que tem de ter uma existência objectiva. Husserl tem necessidade de dar uma explicação fenomenológica de como é que se atribui a um objecto que já estava no mundo, um sentido e uma essência própria, passível de explicação, como um ser que não faz parte do meu próprio ser e nem é uma sua parte integrante, mas que apesar de tudo só tem sentido e explicação a partir de mim.
Os outros surgem, por um lado como existentes na realidade, e por outro como objectos do mundo, contudo, apesar de por um lado serem “coisas” simples da natureza, por outro não o são. Assim, os outros apresentam-se como algo que está excluído do meu ego primordial, convertendo-se em alter-ego, este ego aqui incluído é o eu próprio, que é constituído na minha própria esfera, como unidade psico-física. A partir daqui é possível perceber a existência de algo estranho a mim, de um mundo objectivo onde pertencem os outros e eu próprio.

«Ao ter a experiência de outrem dizemos, em geral, que ele próprio está, “em carne e osso” perante nós. Por outro lado, esta característica “em carne e osso” não nos impede de concordar, sem dificuldade, que não é o outro “eu” que nos é dado no original, não é a sua vida, os seus próprios fenómenos, nada do que pertence ao seu ser próprio. Porque se esse fosse o caso, se o que pertence ao ser próprio de outrem me fosse acessível de uma maneira directa, seria apenas um momento do meu próprio ser, e, no fim de contas, eu próprio e ele próprio seriamos o mesmo.» (Husserl, 2001, 139)

O tu e os outros surgem apenas com um conteúdo onto-noemático. Surge desta forma, dentro da minha esfera primordial, uma comunidade de egos que coexistem uns com os outros e comigo próprio. Com isto, a explicação do mundo ficaria apenas reduzido à explicação do ego. O eu funcionaria como uma mónada ao jeito Leibniziano, um eu fechado sem janelas, em que tudo faz sentido dentro do eu e a partir do eu. O eu é uma mónada e os outros eu (as outras mónadas) assumem-se no seio do eu partindo de uma consideração por analogia (a que Husserl chama co-apresentação); a partir dos corpos vivos que são dados, atribui-se a esses corpos uma forma de ser análoga ao meu eu, «só uma semelhança que ligue na esfera primordial esse outro corpo com o meu, pode fornecer o fundamento e o motivo para conceber “por analogia” esse corpo como um organismo» (Husserl, 2001, 141). Husserl a partir do sujeito enquanto mónada, perspectiva a possibilidade de pensar outros sujeitos que surgem como outras mónadas. Estas mónadas, que não têm qualquer contacto com nada exterior, trazem já consigo o seu funcionamento e em conjunto constituem o mundo real. Estas mónadas formam uma espécie de comunidade de vários eu que comunicam uns com os outros porque todos são constituídos, pela sua intencionalidade comum, da mesma forma, o que pressupõe uma harmonia das mónadas.
O outro transforma-se numa modificação do meu eu. Eu dou origem a que uma modificação intencional de mim mesmo e da minha originalidade se torne válida sob o título de percepção do exterior, percepção do outro, isto é, de um outro eu, que é para si mesmo um eu tal como eu sou um eu para mim. O ego compreende o seu próprio ser como mónada na esfera formada pela intencionalidade; e nesta forma-se em seguida um outro ego como reflexo do meu próprio ego, da minha mónada, isto é, constitui-se como um alter-ego, que é análogo ao meu ego mas ao mesmo tempo é outro. O que existiria era uma espécie de «comunidade de mónadas e, nomeadamente, de uma comunidade que constitui (pela sua intencionalidade constituinte comum) um só e mesmo mundo» (Husserl, 2001, 137). O que permite a distinção entre uma esfera intersubjectiva e o mundo objectivo, que já não é transcendente à sua esfera, mas sim inerente na qualidade de transcendência imanente.
Forma-se assim na esfera da minha própria intencionalidade o outro como estranho. No campo da percepção da minha natureza primordial, surge um corpo que, sendo primordial, somente pode caracterizar um elemento determinante de mim próprio, (transcendência imanente). Isto porque, «nesta natureza e neste mundo o meu corpo é o único corpo que é e que pode ser constituído de uma maneira original como organismo (órgão funcional)» (Husserl, 2001, 141), torna-se necessário que o outro corpo, que se dá também como um organismo, adquira o sentido de uma “transposição aperceptiva” a partir do meu próprio corpo. Os outros estão no mundo mas simultaneamente são sujeitos do mundo, que também percebem o mundo, tal como o nosso ego percebe. O ego tem as suas experiências e os seus fenómenos do mundo, tal como todos os outros alter-egos têm as suas, cada um tem o seu mundo fenomenológico apesar do mundo da experiência ser igual para todos, aliás, a subsistência de um sistema de mónadas é legitimada pela existência de um mundo objectivo que lhes é comum. Existe uma “distinção radical” entre apercepções que correspondem pela sua origem à esfera primordial e apercepções que aparecem com o sentido de alter-ego.
O tu e os outros apresentam-se também de duas formas, por acoplamento e reflexivamente; a circunstância do ego e o alter-ego surgirem sempre num acoplamento, ou seja, em pares, resulta do facto de na co-apresentação o eu surgir sempre como estando presente e vivo, o que, por consequência, faz com que a – “criação primitiva” que deriva do original – mantenha sempre o seu movimento vivo e activo. Este facto leva a que o objecto que é co-apresentado por analogia não possa ser dado como algo presente, não pode ter o carácter de uma percepção verdadeira. O acoplamento desenvolve-se naturalmente de uma formação em pares para uma formação em grupo, em multiplicidade. O acoplamento forma um fenómeno universal na esfera transcendental. A multiplicidade deriva de uma associação que se dá no acoplamento. Esta associação acoplante emerge do facto de dois conteúdos serem aí claramente e intuitivamente dados na unidade da consciência, isto é, como «pura passividade, fundam fenomenologicamente uma unidade de semelhança» (Husserl, 2001, 144), aparecem em par. Se existirem mais dados, então forma-se uma unidade fenomenal do grupo, formada a partir dos pares particulares. Quando na nossa esfera primordial aparece, enquanto objecto diferente, um corpo parecido com o meu, isso significa que, devido ao acoplamento e à apercepção, deve obter a significação de organismo que lhe é transferido pelo meu.
A existência do outro funda-se em nós como algo inacessível directamente e em si mesmo, através de uma acessibilidade indirecta, mas verdadeira. Aquilo que directamente é apresentado e que pode ser justificado é o “eu próprio”, que me pertence como próprio. A experiência indirecta do outro é assim fundada indirectamente, isto é, é uma experiência que não apresenta o próprio objecto, mas que apenas o indica. Eu só posso pensar o outro como algo análogo àquilo que me pertence, não é mais que uma “modificação intencional” do meu eu, uma outra mónada que se forma por co-apresentação na minha mónada.
O eu é presente, e reconhece-se no passado, constituindo-se a si próprio como um eu que se conserva através do seu passado como auto-temporalidade. O meu corpo está sempre presente, cria uma articulação na minha esfera, é-me dado no modo do aqui, ao passo que o corpo dos outros é-me dado no modo do ali. O facto de eu estabelecer uma relação intencional com o meu corpo, devido à possibilidade de mudança na minha orientação (que cria uma natureza espacial), faz com que todo o ali se possa transformar no aqui, e posso compreender as coisas a partir do ali. O outro surge para mim como constituído com os mesmos fenómenos que eu poderia ter se fosse ali, e o seu corpo surge a ele na forma de um aqui absoluto. As minhas experiências vividas sucedem-se, no entanto, alcançam para mim uma qualidade de ser, de existência temporal, porque através de re-apresentações surge de novo o original desaparecido, essas re-apresentações unem-se numa síntese acompanhada da consciência evidente do mesmo. Os objectos ideais podem desta forma ser produzidos e reproduzidos em qualquer momento do tempo. Logo, a coexistência do meu eu com o eu do outro, da minha vida intencional e do outro, das minhas realidades e das dele, presume a criação de uma forma temporal comum. É desta experiência do outro que se estabelece em mim a elucidação de comunidade, isto é, a comunidade surge a partir de mim e o ego monádico do outro, resultando numa “obrigatoriedade” de comunidade de mónadas, todas coexistentes, com um único mundo objectivo.
Ao expor aquilo que me corresponde, aquilo que pertence ao meu eu, leva a que compreenda no eu o não-eu. O "não-eu", por analogia, obtém o sentido. Mesmo que se conclua que aquilo que é verdadeiro e que existe para mim extraia o seu sentido existencial de mim, o solipsismo é superado. A consciência de mim só é possível a partir do «ser que está em comunhão espiritual com o ser» (Husserl, 2001, 164). É esta comunhão que constitui a condição transcendental da existência de um mundo objectivo, de um mundo dos homens e das coisas.  

Ricardo Carvalho