sábado, 23 de julho de 2011

Não-coisa

A história da humanidade caracteriza-se por várias fases, tal como acontece com todas as outras espécies de animais, contudo, a evolução do ser humano atingiu um grau de desenvolvimento que nenhuma outra espécie alcançou. Primordialmente funcionava como os outros animais, tinha as mesmas necessidades, como alimentar-se, proteger-se, procriar e sobretudo tentar sobreviver o máximo possível. A orientação do homem neste mundo ambiente não representava uma dificuldade de maior, porque o homem movia-se na natureza e identificava-se bem com ela. Até aqui o homem era como outro animal qualquer, a diferença fundamental surgiu com o diálogo da mão com o cérebro (cf. Vidal-Naquet, 2007: 14), de onde nasceu o utensílio artificial, que propiciou o desenvolvimento da técnica e que possibilitou a criação de instrumentos. O homem começa a criar objectos (artificiais) que não se encontram na natureza alterando o mundo ambiente em que vive.
A sua qualidade de homo faber, um ser criador, dotado de um psiquismo superior ao psiquismo animal mais elevado, faz com que o homem se revele como inventivo nos mais diversos domínios, nomeadamente os tecnológicos, científicos, artístico, literário, filosófico e religioso, ou seja, um ser dotado de desejos e aspirações, que sente a necessidade de se exprimir. Esta noção, de um ser criador e superior, surge da ruptura entre natureza e cultura (objectos artificiais), o homem que numa primeira fase vivia apenas rodeado pela natureza, encontra-se agora rodeado por uma sobrenatureza, com objectos reais e artificiais. É neste contexto que surge a questão da não-coisa, na sequência das suas meditações sobre o papel do design no futuro, Flusser vê surgir uma nova fase na história do homem, a das não-coisas, o mundo ambiente de coisas está a ceder lugar a um mundo de não-coisas.
Flusser caracteriza as coisas como “objectos mensuráveis, quantificáveis e que se podem facilmente manipular”, (incluindo como coisas o homem, porque a ciência transformou-o num objecto como todos os outros). A orientação do homem neste mundo ambiente já não é tão simples como acontecia quando apenas tinha objectos naturais. Para se poder orientar neste mundo, o homem tem de saber distinguir o que são coisas naturais de artificiais. Esta distinção não é tão simples como se pode supor à partida, e Flusser chama a atenção para isso mesmo com o exemplo da hera que nasce nas casas, é difícil saber se ela é natural ou artificial, porque por um lado é uma planta viva (natural), mas por outro lado é plantada e organizada de acordo com a estética do jardineiro (artificial). A distinção entre o que é a natureza real e a cultura parece já não fazer sentido neste mundo ambiente, dada a quantidade de objectos artificiais que foram produzidos e a sua acoplação com a natureza. Aquilo que faz a distinção está, de certa forma, oculto, por isso a orientação neste mundo ambiente não é de forma alguma fácil.
O homem ao “distanciar-se” dos animais já não se limita apenas a sobreviver mas sente necessidade de viver, e para tal precisa de encontrar o melhor caminho para a concretização desse desígnio. Flusser, à maneira heideggeriana, identifica a razão da existência humana, como “o ser para a morte”. Viver significa “ir de encontro à morte”, é para isto que nos orientamos. As coisas aparecem-nos como obstáculos neste trajecto de encontro à morte, funcionam como uma resistência ao seu livre percurso, são problemas (em grego objecto é probléma) que têm de ser resolvidos para desobstruir o caminho. Assim, ”viver significa resolver os problemas para morrer” (Flusser, 2010: 96). Estes problemas são resolvidos transformando as coisas intratáveis em coisas manipuláveis. Quando o homem encontra um problema que não pode resolver significa que chegou ao fim do seu percurso, e realiza-se existencialmente, ou seja, morre, este problema não solúvel é a coisa última. Desta forma, as coisas representam a condição da existência humana, para viver apenas é necessário agarrar-se às coisas. Neste mundo o homem sente algum conforto, porque conhece aquilo que é necessário para viver.
A relação especial que o homem mantém com a natureza deve-se ao facto de ter uma mão que pode agarrar os objectos e que os in-forma. O homem com o poder de manipular os objectos vai transformá-los sucessivamente até conseguir esgotar toda a informação contida no interior da sua forma. Este consumo exaustivo dos objectos faz com que eles percam a utilidade e se transformem em “lixo” que regressa à natureza. O mundo já não é só o conjunto de objectos naturais e artificiais, é também o dos resíduos. A história humana que parecia cingir-se à relação entre natureza e cultura tem de ser repensada em função da relação entre natureza, cultura, resíduos e novamente natureza. A história humana entra num círculo vicioso, onde o progresso não passa de uma ilusão. A solução para sair deste círculo vicioso consiste em encontrar informações que não possam ser esgotadas, e para isso é necessário criar algo que a mão não possa agarrar. É necessário passar de uma cultura material para uma cultura imaterial. As não-coisas são a tentativa dessa criação de cultura não material, porque são algo que a mão não pode agarrar.
O que significa de facto uma não-coisa? Pela semântica da palavra poderíamos ser levados a pensar que não-coisa significa a ausência de uma coisa. Todavia, não é isso que Flusser entendeu pelo neologismo, as não-coisas têm uma existência própria, a diferença caracteriza-se por as coisas serem objectos materiais e as não-coisas imateriais. Flusser identifica as não-coisas como informações, «A informação sempre existiu…As informações que agora invadem o nosso mundo-ambiente e substituem as coisas nele contidas são de um género que nunca existiu: trata-se de informações imateriais» (Flusser, 2010: 97). Muito embora a informação sempre tenha existido dentro das formas das coisas, este tipo de informações são diferentes, por serem impalpáveis (como por exemplo, as imagens das televisões ou o software dos computadores, etc.), as não-coisas são “inapreensiveis”, isto é, não se deixam agarrar ou apoderar-se delas, «por muito que possam ser verdadeiras no plano ontológico, no plano existencial trata-se de uma ilusão» (Flusser, 2010: 97). As não-coisas suplantaram as coisas, alterando completamente o mundo ambiente. A passagem de um mundo ambiente puramente natural para um mundo ambiente natural/artificial não constituiu um problema de maior para o homem, uma vez que, a diferença apenas se situa num nível gnosiológico, o mundo continua a ser constituído por coisas que o homem pode, de alguma maneira, controlar. Todavia, a mutação do mundo ambiente de coisas para não-coisas faz com que homem se depare com maiores dificuldades de orientação e com que perca o conforto de saber o que tem de fazer para viver (agarrar-se às coisas).
Neste novo mundo o interesse das pessoas desloca-se da posse das coisas para a fruição da informação. Já não interessa tanto produzir coisas, mas antes não-coisas. O mundo ambiente torna-se cada vez mais espectral, no sentido de ser mais difícil identificar os objectos que o constituem, o que obriga a uma nova matriz da vida e uma nova perspectiva dos valores. Com a valorização das não-coisas as coisas perdem o seu valor que é transformado em informação. As não-coisas são intangíveis, por isso as mãos tornam-se também elas inúteis, o homem deixa de ter acção, porque a compreensão e produção ficam destinadas para as inteligências artificias, para os programas, para as não-coisas.
Este mundo vindouro acarreta consequências ou efeitos sociais, políticos, morais, etc. O ser humano liberta-se do trabalho e fica desempregado (o desemprego na actualidade deve-se precisamente à situação imaterial que o homem encontrou). A mão torna-se inútil mas não as pontas dos dedos, que passam a ser essenciais nesta nova tarefa que o ser humano tem pela frente. A produção de informação, o jogo de transformações de símbolos, só é possível com a ponta dos dedos. Estes vão ser necessários para carregar em teclas, que transformam os símbolos em algo perceptível. O homem ao decidir em que tecla carregar passa a ter a liberdade de escolha e decisão que antes não tinha. Mas esta liberdade é ilusória, porque o homem apenas pode decidir e escolher dentro dos limites dos programas, é uma liberdade pré-programada, a escolha situa-se sempre dentro de algo predefinido.
Na actualidade encontramo-nos no ponto de convergência das duas etapas, estamos a assistir e a testemunhar à passagem de um ciclo para outro. O nosso mundo ambiente ainda é constituído por muitas coisas, contudo, cada vez mais surgem não-coisas e cada vez mais dependemos delas e perdemos o seu controlo. É talvez devido a este facto que o nosso tempo assistiu e continua a assistir a uma desorientação generalizada, o homem parece que perdeu o sentido da sua existência e não consegue encontrar o seu caminho (muita da arte que hoje é produzida reflecte essa desorientação). O homem se por um lado ainda se tenta agarrar às coisas, por outro lado já não consegue agarrar aquilo que realmente o influencia e domina. Esta situação apenas cessará quando as coisas forem deixadas definitivamente de lado.
 E se para já as não-coisas ainda se encontram muito presas a objectos materiais, é plausível imaginar que no futuro a situação se inverta, cada vez mais os objectos materiais são mais pequenos e contêm cada vez mais informação, um objecto material (coisa) pequeno pode conter um sem número de informações (não-coisas), por exemplo, as memórias dos computadores. Este futuro poderá não estar tão longe como parece, cada vez mais as não-coisas estão a automatizar-se e tornarem-se autónomas, já não será o objecto material a condicionar a informação, é mais o inverso, como acontece por exemplo com a tecnologia multi-touch, em que o suporte material vai desaparecendo, já não é necessário um rato, um teclado, um monitor, “apenas” são precisos os dedos. A liberdade ilusória transforma-se num totalitarismo programado. Este totalitarismo não é necessariamente mau, uma vez que a informática cada vez mais nos abre a possibilidade de escolha, isto é, cada vez a ilusão é maior ao ponto de no futuro parecer efectivamente algo real. As possibilidades de escolha vão ser de tal ordem que ultrapassarão a capacidade do ser humano as apreender, as decisões vão parecer actos absolutamente livres. Talvez a sociedade do futuro viva na utopia de hoje, isto é, numa sociedade emancipada do trabalho que acredita ser absolutamente livre. 
O homem que agora é visto como Homo faber, que trabalha e que cria, está em vias de extinção, para dar lugar a um novo homem, o homo ludens, aquele que joga. O homem torna-se um jogador de símbolos. Este jogo passa a ser o novo elemento da cultura. Isto pode trazer implicações profundas no homem, a nível intelectual, físico e moral. O “novo” homem ao deixar de ter acção e de criar fica mais estático, mais sedentário, sem tanta agilidade e destreza gestual, a inteligência é substituída por inteligências artificiais, a moral deixa de fazer, de certa maneira, sentido, porque é difícil imputar responsabilidades morais a robots ou aos seus diversos programadores, que por sua vez se basearam noutros programas, entramos num ciclo vicioso. Talvez o ser humano esteja hoje no seu limite de desenvolvimento e agora entre num processo de regressão, deixando de ter a fisionomia que hoje apresenta, para voltar a ter o aspecto côncavo que já o caracterizou. Sendo assim ou não, o provável é que surja uma nova espécie de ser humano. Contudo, o essencial mantém-se, o homem vai continuar a “ir de encontro à morte”, mas em lugar de morrer devido a problemas não resolvidos, das coisas, morre de erros de programação, de não-coisas. A razão da sua existência permanece no “ser para a morte”, quer esta seja a coisa última ou a não-coisa última. Este facto aproxima este novo ser humano que se avizinha do homem actual e do homem passado, ou seja, o homem continua a ser “ele e as suas circunstâncias”, quer elas sejam de coisas ou não-coisas.  
Como conclusão é de salientar o facto de o conceito de não-coisa não ser um fenómeno tão recente como possa parecer. Se analisarmos o ser o humano verificamos que este é precisamente constituído por coisas e não-coisas. Descartes salientou precisamente este facto, ao fazer notar a divisão que existe no ser humano entre aquilo que é material e aquilo que é imaterial. O corpo pode ser visto como uma coisa e os pensamentos ou os Qualia, como não-coisas, muito embora, as não-coisas de Flusser sejam algo muito diferente da res cogitans cartesiana, porém, esta analogia pode ajudar a evidenciar o novo ambiente que nos espera e as dificuldades que vai apresentar. O corpo, aquilo que é material, já está praticamente esgotado, hoje o homem sabe quase tudo que há para saber acerca do corpo, no entanto, relativamente à mente, àquilo que é imaterial no ser humano, o homem praticamente não saiu do lugar, ou seja, continua a saber muito pouco acerca destes fenómenos, devido precisamente ao seu carácter imaterial, que faz deles algo subjectivo e de difícil análise e controlo. Com as não-coisas de Flusser é provável que algo de semelhante suceda num ”novo” mundo em que as coisas estão praticamente esgotadas, e em que as não-coisas, aquilo que é imaterial, sejam algo difícil de analisar, controlar e com um progresso lento devido ao seu carácter espectral. 

Ricardo Carvalho
Vera Alves

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O que é a arte - perspectiva formalista, Fry e Bell

O formalismo vai evoluir de forma bastante diversa, e há dois grandes momentos dessa evolução; a música por um lado e as belas arte por outro.
Temos por um lado um grande desenvolvimento do formalismo na música a partir da obra de Eduard Hanslick, um grande crítico musical de Viena, que em 1854 publicou um livro importante Sobre o Belo Musical, onde toma partido dos chamados brahmsianos (Brahms) contra os chamados wagnerianos (Wagner). Na época destes dois compositores havia uma grande disputa entre os seus adeptos, Wagner representava a música ligada à poesia (a música pura seria uma tontice, a música só faz sentido quando estiver ligada à poesia e à dança), pelo contrário Brahms e os seus adeptos defendiam que a música deveria existir como uma pura forma. E é em defesa de Brahms que Hanslick escreveria. Hanslick vai desmontar a ideia de que a música é capaz de transmitir imagens ou sentimentos. Sempre que ao ouvimos uma peça musical, tentamos colar-lhe imagens ou insistir na ideia de que estão a ser expressos determinados sentimentos e emoções, associamos ideias. E esta associação de ideias acaba por nos distrair daquilo que é essencial, que é a escuta da forma musical livremente. A música é um conjunto de formas musicais em movimento, se nos distrairmos dessa evolução de formas e movimento não temos acesso ao que é música. 
No fim do século XIX as mesmas ideias são transpostas em termos sistemáticos para o âmbito das artes visuais, através da obra de dois críticos e filósofos da arte ingleses, Roger Fry e Clive Bell, que integravam o chamado grupo de Bloomsbury, que incluía, para além dos dois, os romancistas E. M. Forster e V. Wolf, o economista J.M. Keynes, os pintores D. Grant e V. Bell e o jornalista L Woolf. Era um grupo que pretendia mudar o estado da situação sobretudo ao nível dos estudos artísticos e da compreensão do que era a arte em Inglaterra. O grupo inspirou-se fortemente nas ideias do filósofo G. E. Moore, que no fim do século XIX publicou um livro, Principia Éthica, que iria ter grande influência, onde defendia uma espécie de intuicionismo ético. No livro Moore desmontava todas as formas de justificação conceptual dos actos bons e maus para chegar à conclusão que a única forma de justificarmos o que é bom e mau é de alguma maneira apelando a uma espécie de intuição particular, a bondade nas coisas capta-se através de uma intuição. Esta ideia vai passar para o círculo de Bloomsbury, que defendia a ideia segundo a qual teríamos uma capacidade particular de recepção das formas que é pré-discursiva, se formos capazes de retirar todas as coisa que se depositam entre nós e as formas dos objectos, seremos capazes de ter um acesso intuitivo puro a essas formas.

·         Roger Fry

No texto Um Ensaio de Estética Fry pretende responder a esta questão; «Será que alguma vez chegaremos a concluir algo sobre a natureza das artes gráficas que consiga explicar todos os sentimentos que lhes devotamos, que coloque as artes visuais, finalmente, numa espécie de relação com as outras artes e que não nos deixe nesta perplexidade extrema, engendrada por uma qualquer teoria da mera imitação?» (Fry, apud Moura: 59-60). Fry começa por distinguir vida real de vida imaginativa:
Vida real/responsiva: sujeita à relação causa efeito (é a vida de todos os dias). Submetidos à vida responsiva estamos presos a uma teia de causas e consequências, os nossos actos têm consequências sobre os outros e os dos outros sobre nós.  
Vida imaginativa: se nos concentrarmos em aspectos da vida humana, conseguimos libertar-nos da relação de causa efeito e ter experiências que normalmente nos escapam, podemos libertar-nos da teia de causas e consequências.   

Um dos exemplos que Fry dá no texto é o de pedir que imaginemos um touro a avançar sobre nós na vida real e esse touro avançando sobre nós na sala de cinema; quando vemos o touro avançar sobre nós na vida real pensamos logo em fugir dali o mais rápido possível, temos de nos envolver no cálculo das causas e consequência daquilo que se está a passar; quando vemos o mesmo touro avançar sobre nós na sala de cinema podemos começar a ter uma percepção mais nítida da própria experiência, podemos concentrar-nos em aspectos do que é ter uma experiência de algo, porque não estamos submetidos às consequências do que poderá advir dessa situação. Com a vida imaginativa conseguimos uma “liberdade face a condições externas necessárias” (Fry, apud Moura: 65), esta é a primeira grande vantagem da arte, libertar-nos da vida responsiva para permitir-nos aceder à vida imaginativa. Imersos na vida prática estamos também imersos num mundo de etiquetas, olhamos para os objectos e não vemos formas apenas vemos utilidades, há uma espécie de filtro constante entre nós e as formas que são precisamente as etiquetas de utilidade que colamos às coisas que nos envolvem, algo que se deve ao facto de ao longo dos séculos termos adquirido aquilo que Fry designa por “especialização da visão”. Heidegger, que em certa medida está próximo dos ideais formalistas, dizia a propósito que, “a utilidade das coisas pisca-nos o olho”. Ao longo de séculos ocorreu uma especialização da visão, passamos a olhar para os objectos como utensílios. A arte serve para nos libertar dessa visão, permite dar conta das coisas em si mesmas, de termos uma relação directa com a sua entidade formal. Tal como Heidegger, para Fry a arte também serve para nos libertar desta visão especializada, para retirar as etiquetas às coisas e expô-las como puras formas, podemos ter acesso à realidade em si (Fry pensa estar na linha de Kant).
Há um exemplo que é sempre enumerado por Fry (e também por Bell) que é o pintor Cézanne, por ser um artista que pegou nas coisas e tirou-lhes o invólucro de serventia, procurando apresentar as coisas como são em si mesmas. Ao vermos um quadro de Natureza Morta de Cézanne vemos que nada daquilo está de acordo com as regras comuns da perspectiva clássica, podemos ver o cesto de fruta como se estivéssemos a observa-lo de cima, depois vemos uma maçã como se estivéssemos mesmo de frente a ela, portanto há uma diversificação dos pontos de vista, uma libertação da perspectiva única e uma tentativa de fazer com que o objecto se torne dominante na apresentação, é o objecto quem determina a forma como o observamos e não o contrário.
Estes objectos, que a arte consegue entregar de uma forma pura, excitam aquilo que Fry chama “intensidade desinteressada da contemplação”, contemplamos os objectos tentando chegar aquilo que os objectos são em si mesmos. Esta intensidade desinteressada é obtida através de formas que se caracterizam por quatro características fundamentais:
1)      Ordem: uma forma ordenada, coerente e coesa faz com que o objecto seja bem ordenado. Sem ordem as nossas sensações estariam perturbadas ou confusas.
2)     Diversidade\Variedade: sem variedade as nossas sensações não seriam suficientemente estimuladas. A ideia de que o belo é ordem na variedade vem desde Tomás de Aquino; e quando no séc. XVIII, F. Hutcheson procura um critério para distinguir um objecto de arte de um objecto comum, encontra a uniformidade na variedade, e isto é recolhido para o formalismo.
3)     Consciência de uma finalidade: olhamos para o objecto e apercebemo-nos de que responde a um problema colocado pela arte, tem a finalidade inerente à própria forma. Este é o elemento mais aceitavelmente Kantiano, é uma inspiração Kantiana da “finalidade sem fim” (zweckmässigkeit ohne zweck), finalidade estritamente formal. Consciência de um objectivo que se resume à própria forma.
4)     Unidade: sem unidade não seriamos capazes de atingir uma contemplação completa do objecto, a obra deve, por isso, oferecer-se na integridade, por exemplo; a moldura do quadro ajuda-nos a perceber essa unidade. T. Adorno (filósofo da música que estabeleceu como objectivo fazer uma filosofia da música moderna) definiu a música como a “antecipação do fim”. E esta ideia encaixa muito bem aqui: é a consciência do fim que dá unidade à peça musical.

Em todas as formas encontramos estes princípios. Estes princípios gratificam a nossa necessidade de percepção de forma. No caso particular das artes plásticas, são complementados com estratégias a partir das quais o artista é capaz de despertar as nossas emoções:
1)      Ritmo da linha: ritmo do desenho dos objectos;
2)      Massa: a inércia e poder de resistir aos movimentos;
3)      Espaço: cada forma visual proporciona um espaço diferente;
4)      Luz e Sombra;
5)      Cor: apesar de ser um filósofo da pintura, Fry participa de um certo preconceito filosófico sobre a cor (a cor é muita dada à construção de metáforas).

A arte proporciona uma reacção emocionada, e essa reacção emocionada explica-se em parte porque as formas proporcionadas pela arte estão baseadas naquilo que Fry chama, quase no fim do texto, “as necessidades fundamentais da nossa natureza física e fisiológica” (Fry, apud Moura: 74). Ou seja, acabava por haver duas explicações não completamente compatíveis para a importância e o papel da arte na vida do homem. Por um lado temos a visão inicial da vida imaginativa, do modo como a arte liberta as formas das suas etiquetas e oferece-nos a forma das coisas tais como elas são, mas no fim Fry aponta uma outra teoria estética, que hoje se chama cognitivismo, e que consiste em explicar a arte como uma resposta às nossas necessidades fisiológicas, nós estamos constituídos para percepcionar o mundo de determinada maneira e a arte constrói objectos adequados à maneira como estamos preparados para perceber as coisas, e é essa adequação que nos emociona. As formas que nós apreciamos têm uma relação cinestésica com o corpo, no sentido de provocarem uma reacção muscular no corpo e isso ajudaria a realçar a importância da arte. Fry acaba o seu texto apontando no sentido de um certo cognitivismo em termos de explicação da arte.

·         C. Bell

Bell também vai insistir na importância da forma, mas não vai avançar nenhum tipo de explicação para isso, porque para Bell todas as tentativas de explicar a importância da forma para o observador são modos de limitar o poder dessas formas. O texto fundamental de Bell é o livro Arte, onde Bell tenta responder a uma questão semelhante à de Fry; por que é que somos tão profundamente comovidos por formas relacionadas de um modo particular? Para responder a esta questão Bell vai tentar colocar duas hipóteses, a estética e a metafísica:
1)        Hipótese estética: vive da tese da bifurcação e confunde-se com a ideia de que só através da arte temos acesso a aspectos da experiência que normalmente nos escapam, acesso a uma emoção estética, às formas puras. O elemento representativo (a história que é contada) não interessa, o que conta é a contemplação formal. Segundo Bell, para apreciar arte não precisamos trazer nada da vida, apenas um sentido de forma, cor e de conhecimento do espaço tridimensional. Quando o espectador procura ir além da forma revela uma sensibilidade diferente. Bell apresenta três princípios:
a)      Ausência de representação: a verosimilhança não é o objectivo.
b)      Ausência de virtuosidade técnica: se este elemento estiver presente já estamos a olhar ao conteúdo.
c)      Interesse por uma forma sublimemente impressionante.

Estes princípios encontram-se na pintura dos primitivos italianos. Daí a preferência de Bell por eles. A hipótese estética significa também que através da arte somos capazes de nos afastar das emoções da vida. A emoção estética não deve ser confundida com o reino das emoções comuns, e aqui está presente um afastamento face ao expressionismo: permitir que nos afastemos das emoções comuns, é uma explicação para a importância da forma que vale por si só, aquilo que Bell chama a forma significante. «Usar a arte como meio de aceder às emoções da vida é o mesmo que usar um telescópio para ler as notícias» (Bell, apud D’Orey: 43). A arte proporciona-nos formas significantes, e tudo o que podemos dizer da forma significante é que ela envolve os três princípios acima descritos, proporciona-nos um tipo muito especial de emoção a que Bell chama “emoção estética”.  
2)        Hipótese metafísica: estamos habituados a ver não puras formas mas “meios amortalhados em associações”. Olhamos para os objectos como meios e não como fins; estamos sempre a associar as coisas entre si e perdemos as relações das coisas em si mesmas. O artista, pelo contrário, detém uma “apreensão apaixonada da forma” e por isso é o único capaz de libertar esta mortalha das coisas. Aquilo que normalmente tomamos como essencial, por exemplo, a verosimilhança, não é senão um pretexto para organizar as formas, e os artistas precisam de um pretexto; mas fazer um retrato não é essencial, o essencial é forma que se vai criar na mente do artista a partir daquele pretexto. O artista, tentando responder a um problema, cria uma forma que vale por si só. Somos particularmente emocionados porque através da arte temos acesso às coisas como fins em si mesmas (emoção metafísica). Ao procurar captar a coisa em si mesma, a arte vai para além daquilo que é percepcionado (a arte não está interessada em fazer uma cópia). Por isso é que a reacção das pessoas comuns à grande arte é de desconforto, “de stress”. O incómodo resulta do facto de estarmos perante objectos em si mesmos, desligados das associações, da instrumentalização.

E a partir desta relação entre arte e coisas em si mesmas Bell estabelece uma ligação entre arte e religião, há um certo misticismo que resulta da hipótese metafísica. De acordo com Bell, há duas actividades humanas que tendem a ver as coisas como fins e não como meios: a religião e a arte. A única diferença é que a religião cria uma hierarquia entre as coisas, há coisas mais valiosas que outras, enquanto na arte qualquer objecto pode ser digno de forma significante. É por isso que as épocas de fervor religioso são normalmente um período fecundo para a arte (provavelmente não teríamos a obra de Bach fora da época da reforma/contra-reforma). Este tipo de conclusões levou a que muitos comentadores acusassem Bell de um certo misticismo pouco consentâneo com o seu formalismo.
De tudo isto resulta que para Bell é inútil falarmos de evolução na história da arte, por isso é que Bell privilegia os primitivos italianos a pintores como Rafael, Giotto ou autores que criam dentro das leis da perspectiva clássica. A proporção das formas significantes pode ser obtida em qualquer momento da história da arte.

                   Ricardo Carvalho

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Kant - A Ideia Estética


Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant distingue aquilo a que chama beleza pura ou livre (arte À La Grecque) de beleza dependente (Conceito):
Beleza pura: encontra-se exclusivamente na forma, não é necessário adicionar quaisquer conceitos, ex. música sem palavra, não programática, e determinadas estruturas das artes decorativas, ex. aquilo a que Kant chama “desenhos à la grecque”. Há uma relação desinteressada, ideia de desinteresse, a beleza livre agradaria pela sua pura forma.
Beleza dependente: toda a beleza que depende de algum conceito. O conceito perturba a nossa relação com o objecto. De certa maneira, é uma beleza secundária, inferior.
 Ora, quando a beleza depende da relação a conceitos, como no caso da poesia, então não temos acesso a uma pura forma, neste caso estamos determinados por algo cognitivo da nossa relação com a forma. Se começássemos a ler a critica da faculdade de julgar e parássemos à volta da secção XVI parecia-nos que Kant era um formalista puro e duro, a teoria da bifurcação está bem presente nas primeiras secções, é possível separar a consideração só pela forma e a consideração pelo conteúdo. O conceito atrapalha a nossa relação com a forma, e portanto dá-nos acesso a uma experiência estética relativamente menor, porque não é uma relação estritamente baseada no contacto com uma forma. No entanto, mais tarde, Kant complexifica as coisas de modo a introduzir no seu sistema a arte que ele antes teria classificado como uma beleza dependente. Maior parte da arte vive daquilo a que Kant chama; os conceitos indeterminados. Surge então a distinção entre conceitos determinados e indeterminados;
a)        Conceitos determinados; os conceitos determinados são conceitos com uma determinação objectiva, que criamos através do modo de funcionamento cognitivo normal. Há algo do objecto que determina esses conceitos, por exemplo, o nosso conceito de mesa está dependente daquilo que é o objecto mesa, ou seja, para alcançar o conceito de mesa, nós temos a possibilidade de encontrar um correspondente objectivo exterior.
b)      Conceitos indeterminados; nestes conceitos não conseguimos encontrar um referente externo. Os exemplos que Kant dá pertencem quase todos aos domínios da ética e da política (ex. conceito Majestade, Bem-aventurança, Vida Além-túmulo, Beleza), não existe referente externo para estes conceitos.
Para estes conceitos nós procuraríamos em vão um correspondente objectivo. Mas o nosso entendimento, o nosso sistema cognitivo, está montado expressamente para unificar os dados da experiência e para nos conduzir a conceitos objectivos claros e distintos e ao não encontrar este tipo de conceitos o nosso sistema cognitivo não sabe o que fazer. Acontece então que a imaginação vai propor imagens, vai propor aquilo a que Kant chama ideias estéticas, de modo a fazer aquilo que não se pode fazer, ou seja, encontrar um correspondente objectivo para estes conceitos. A arte dedica-se precisamente a isto, à tentativa de criar imagens para conceitos indeterminados. É mesmo a única forma de dar imagens a esses conceitos (ideias estéticas). Por exemplo, para o conceito de Majestade ou de soberania absolutista, a imaginação pode propor uma imagem como a Àguia de Júpiter, para a noção de bem-aventurança podemos recorrer a um verso de Withof “nascia a manhã como a tranquilidade nasce da vida justa”, a beleza seria representada por uma imagem da mitologia, o Pavão de Juno. Outro exemplo é a forma como Kant representa o cosmopolitismo, escolhendo um verso de Frederico II, em que este descrevia um belo pôr-do-sol e a certa altura compreendemos que ele está a falar de si próprio no fim da vida, tal como o Sol deu a volta ao mundo e compreendeu todas as coisas também o homem cosmopolita conheceu tudo, deu a volta ao mundo e pode descansar tranquilamente.
Todas estas metáforas correspondem à “ideia estética” proposta por Kant. O que acontece então na criação das ideias estéticas é que a imaginação como faculdade da criação de imagens – inferior às outras faculdades – propõe imagens para conceitos que não têm uma imagem possível, o entendimento que normalmente trata dos esquemas visuais, pega nas imagens da imaginação e tenta explica-las, conferir-lhes uma racionalidade, uma causalidade, uma substancialidade, etc. Tenta mostrar em que sentido é que essas imagens podem ser ilustrações da Majestade, da bem-aventurança, etc. Todavia, estas imagens da imaginação dão-nos «mais que pensar que o próprio pensamento», as imagens para os conceitos indeterminados são mais ricas do que a explicação dos conceitos. Mas é exactamente na explicação da imagem que o entendimento tenta demonstrar porque é que a Águia de Júpiter pode ser uma boa imagem da Majestade soberana (a águia não admite nenhum rival, nenhum tipo de domínio, e o trovão nas suas garras pode significar que tem o monopólio dos mecanismos da repressão, da violência dentro de um estado, e observando do alto sabendo tudo o que se passa pode castigar com um trovão todos aqueles que forem contra a sua autoridade). Mas o que se pode verificar é que nenhuma destas explicações consegue de alguma maneira explicar um manancial ilustrativo da ideia de estética proposta por Kant. Em que medida é que Pavão de Juno é uma ilustração da beleza? Podemos responder que é por o Pavão ter todas aquelas cores, que para aqueles que o admiram as suas cores não têm nenhuma utilidade, etc. O problema reside precisamente nesta tendência para terminarmos com um “etc” no fim dessa tentativa de explicação. E isto é um pouco o que Kant faz, isto é, colocar um grande “etc” nas tentativas do entendimento explicar o manancial da imagem proposta pela ideia estética. A imagem parece ser sempre mais do que a explicação, há elementos da imagem que são descobertos e deixados em aberto em cada explicação, e o entendimento volta então a aplicar-se a essa imagem, e esta revela-se de novo mais forte, mais superior ao entendimento e assim envolvemo-nos numa troca de informação, num diálogo entre a imaginação e o entendimento, que é aquilo a que Kant chama o «jogo livre das faculdades». É livre porque não está determinado objectivamente, é um jogo em que a imaginação e o entendimento funcionam de certa forma a sós, sem nenhuma determinação objectiva. Não há nenhum dado empírico que possa vir ajudar o entendimento a estabilizar a informação que retira da imagem proposta pela imaginação. Se fosse possível determinar algo objectivo para estas imagens o jogo livre das faculdades cessaria. 
O carácter imparável e inesgotável deste jogo é que explica, no fundo, a sensação particular que nós temos quando estamos diante do belo. Numa outra obra Kant define o conceito de prazer como aquilo que nós gostaríamos que nunca cessasse, e é por isso que podemos chamar a este jogo livre das faculdades, à sensação que ele proporciona o “prazer”. Porque envolvidos nele a imaginação e o entendimento não param de trocar informação. A força da imagem da ideia estética é tão forte que nós gostaríamos que esse jogo nunca parasse (prazer cognitivo). Ao longo desta relação a imaginação e o entendimento vão-se conhecendo melhor um ao outro, vamos percebendo de que forma é que o nosso sistema cognitivo está tão bem montado que é possível trabalhar em “circuito fechado”, ajuda-nos a compreender melhor como funcionamos em termos cognitivos (auto-conhecimento). Quando estamos ocupados em conhecer as coisas a imaginação fica entre parênteses, é uma serva do entendimento. Só no jogo estético, no jogo livre das faculdades, é que a imaginação toma a iniciativa.
Há dois conceitos que Kant associa ao jogo livre das faculdades; o de velocidade e de acordo. Através do livre jogo das faculdades aquilo a que nós vamos assistindo cada vez mais é à grande capacidade que a imaginação e o entendimento têm de concordarem entre si. O entendimento tende a explicar a imagem, mas porque não consegue totalmente esgotar a imagem ele volta a tentar aplicar-se a ela, a imagem serve e não serve às tentativas de explicação do entendimento. Ao longo deste acordo é possível perceber que há uma ligação especial, uma troca cognitiva entre a imaginação e o entendimento, como se fossem faculdades bem articuladas entre si. Outra noção importante é a de velocidade, a ideia de que quanto mais se trabalha este jogo mais veloz é a relação entre a imaginação e o entendimento. O livre jogo das faculdades proporciona aquilo que Kant chama uma “vivificação do ânimo”. Há medida que nos vamos apercebendo desta energia particular envolvida na relação entre a imaginação e o entendimento o nosso ânimo vai-se vivificando. Porque esta capacidade de explicar e ao mesmo tempo não ser capaz de explicar uma imagem (mental), de nos apercebermos simultaneamente da incapacidade da imagem mas ao mesmo tempo nunca desistir de tentar esgota-la, é talvez a melhor prova de capacidade intelectual de qualquer indivíduo. Na verdade, o que acontece é que a maior parte de nós perante determinadas formas acaba por sentir este jogo livre, acabamos por jogar o jogo livre das faculdades. Não existe nada que permita resolver questões de gosto (aqui Kant está de acordo com Hume), mas ao mesmo tempo existe um indicador cognitivo que nos permite saber quando é que o outro sente algo como eu. Este jogo livre das faculdades é tão importante para nós, «a sensação de vida» que daí decorre é tão intensa, que nós queremos que os outros sintam a mesma coisa. Kant afirma que com todos os juízos de gosto eu, para além de estar a qualificar o objecto estou também a fazer uma reivindicação, como o que sinto é tão importante quase exijo aos outros que sintam a mesma coisa. Quando se diz que X é belo, eu não espero que o outro concorde comigo mas quero que o faça, é isto que ele deve fazer, embora não haja nenhum motivo para acreditar que ele o faça. Não posso esperar que ele concorde comigo porque não há nada de objectivo em nenhuma forma que de alguma maneira arrume a questão, mas se todos compreenderam a forma todos concordarão com a beleza de X. Vemos um objecto e depois podemos virar-lhe costas porque a imagem do objecto vai permanecer, e é isso que conta, é relação entre essa imagem mental do objecto e os conceitos que se lhe tentam aplicar.
Para um comentador contemporâneo, M. Budd (crítico de Kant), Kant criou uma arte que apenas se aplica à poesia. Quase todos os exemplos de imagens que Kant fornece são retirados da poesia. Num poema é normal conseguir abstrair o que lemos e ficarmos só com as imagens desse poema. De certo modo, todas as outras formas de arte deveriam reduzir-se à poesia, que possibilita a formação de imagens estéticas. O lado material da arte é assim perfeitamente dispensável.
A relação entre a ideia estética e um conceito indeterminado é replicada na relação entre objecto físico e ideia estética. De certa maneira é a ideia estética que explica o conceito e não o contrário, tal como é o objecto físico que explica a ideia estética e não o contrário. Um exemplo desta relação é a Sabedoria, de Constantin Brancusi, exibida no Art Institute de Chicago, que consiste numa pequena estátua feita a partir de areia colada, e que representa o busto de uma mulher. A estátua está em erosão, a areia vai caindo, o que faz com que todos os dias a estátua fique diferente. Esta estátua é uma boa alusão do que é a sabedoria, nós também vamos perdendo a sabedoria, que é algo que se ganha à medida que se vai perdendo outras faculdades. Este é bom exemplo como um conceito indeterminado (a sabedoria) encontra uma bela ideia estética (um busto de mulher em erosão permanente) mas nós temos de ter acesso directo ao objecto físico para ver de facto a areia que vai caindo aos poucos para termos acesso pleno à ideia estética.      
Apesar de não haver uma determinação objectiva que permita resolver as questões sobre matéria de gosto, se mesmo assim formos capazes de chegar a um acordo aceitando todos que diante de uma determinada forma sentimos o jogo livre das faculdades, se todos sentirmos uma vivificação do ânimo perante determinada imagem, então atingimos talvez a melhor forma de identificação entre os seres humanos. Mais do que concordarmos sobre as leis científicas e políticas nós concordamos sobre as matérias de gosto, e se atingirmos esse acordo estamos a caminho de chegar à noção de ”comunidade humana”, ou seja, à compreensão do que é a humanidade. É por isto que Kant dá grande importância à ideia de uma comunidade de gosto (Sensus Comunis), isto no fundo levar-nos-ia à conclusão de que somos todos constituídos cognitivamente da mesma maneira. 

Ricardo Carvalho