sábado, 28 de maio de 2011

Os comentários De Genesi de S. Agostinho e a polémica copernicana


Em 1543, Nicolau Copérnico, astrónomo e matemático polaco, publicou uma obra, De Revolutionibus Orbium Coelestium ("Da revolução de esferas celestes"), que iria alterar de forma radical a relação do homem com o mundo. Copérnico foi também cónego da Igreja Católica, governador e administrador, jurista, astrólogo e médico. Nesta obra Copérnico desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar (a Terra move-se em torno do Sol). A teoria do Heliocentrismo contrariava a então vigente teoria geocêntrica (que considerava, a Terra como o centro), e é tida como uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia moderna.
            Os filósofos do século XV aceitavam o geocentrismo como fora estruturado por Aristóteles e Ptolomeu. Esse sistema cosmológico afirmava (correctamente) que a Terra era esférica, mas também afirmava (erradamente) que a Terra estaria parada no centro do Universo enquanto os corpos celestes orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor. Essa visão geocêntrica tradicional foi abalada por Copérnico em 1537, quando este começou a divulgar um modelo cosmológico em que os corpos celestes giravam ao redor do Sol, e não da Terra. Essa era uma teoria de tal forma revolucionária que Copérnico escreveu no seu De revolutionibus orbium coelestium «quando dediquei algum tempo à ideia, o meu receio de ser desprezado pela sua novidade e o aparente contra-senso quase me fez desistir da obra feita». Naquele tempo a Igreja Católica aceitava essencialmente o geocentrismo aristotélico, (embora a esfericidade da Terra estivesse em aparente contradição com interpretações literais de algumas passagens bíblicas).
            Copérnico proporcionou uma revolução cosmológica e abriu o caminho a uma enorme polémica (o próprio previu), especialmente com a Igreja Católica. Mas Copérnico não teve possibilidade de defender a sua obra contra a ofensiva que foi feita por parte da Igreja, uma vez que morreu precisamente no ano em que a publicou. Foi aos seus seguidores a quem competiu defender a obra e a conspecção heliocêntrica do universo, particularmente Rético (1515-1574), Galileu (1564-1642) e Campanella (1568-1639).
            Os comentários De Genesi  de S. Agostinho e a polémica copernicana, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Braga, é da autoria de Alfredo de Oliveira Dinis, Doutorado com a tese The Cosmology  of Giovanni Baptista Riccioli  e Mestrado com a tese Heliocentrism  and the Bible from Copernicus to Galileo, no Departamento de História e Filosofia da Ciência da Faculdade de Filosofia (1985-89) da  Universidade de Cambridge (Inglaterra). É o actual director da Faculdade de Filosofia de Braga. Neste texto o professor Alfredo Dinis vai demonstrar de que forma surgiu a polémica, que argumentos utilizaram os defensores do heliocentrismo e do geocentrismo na defesa das suas posições.      
A igreja acusou os copernicanos de contradizer os dados bíblicos, de constituir uma ameaça à cosmovisão cristã e à inerrância bíblica. Um dos maiores críticos dos copernicanos foi Giovanni Riccioli (1598-1671), um jesuíta italiano. Os copernicanos por seu lado defendiam que a revolução de Copérnico também podia ser sustentada pela Sagrada Escritura, que a sua descoberta em nada vinha alterar a mensagem da Escritura.
Desta forma, a polémica vai girar em torno da interpretação que ambos os lados fazem da Sagrada Escritura, ou seja, vai ser fundamentalmente um problema hermenêutico que vai estar no centro da dialéctica. Curioso é o facto de ambos os lados justificarem as suas posições com base nos comentários de S. Agostinho, sobretudo os que este fez sobre os Génesis, encontrando nos seus textos um bom apoio para as suas posições. Santo Agostinho torna-se então a referência principal quer da Igreja quer dos copernicanos, que o vão citar várias vezes.
            Pela parte eclesiástica a interpretação que se devia fazer da Bíblia era a literal, e devia servir como base para a discussão de qualquer texto particular. No concilio de Trento foi dado um forte apoio a esta posição hermenêutica, neste mesmo concilio os bispos definiram que ninguém deveria interpretar a Sagrada Escritura contrariamente ao consenso que eles impuseram, mesmo que uma qualquer interpretação nunca tenha sido explicada. Apesar de a interpretação literal ser considerada a ideal, mesmo dentro da classe eclesiástica não reunia um consenso, uma vez que a interpretação literal poderia ser subdividida em dois, nela própria e em alegórica ou figurada. Contudo a igreja apenas reconhecia a interpretação literal figurada nas passagens em que Deus era representado antropomorficamente e em que as verdades da fé são adulteradas. Assim as passagens acerca da cosmologia, que indicavam para um sistema geocêntrico, deveriam ser interpretadas apenas no sentido literal. É nesta circunstância que S. Agostinho começa a ser referido. Nos seus comentários sobre os Génesis faz também a distinção entre sentido literal e alegórico e, a sua virtualidade hermenêutica, acabou por ser explorada por ambos os lados da polémica. Um facto que contribuiu muito para que os copernicanos vissem um forte apoio às suas posições em S. Agostinho, foi o facto de relegar para 2º plano a discussão relativa a questões cosmológicas.
           
2 – S. Agostinho e a interpretação literal da Bíblia    

Para S. Agostinho o sentido literal da Escritura deve prevalecer, mas o sentido figurado não pode ser excluído. Por várias vezes S. Agostinho tentou fazer uma interpretação totalmente literal do Génesis, mas nunca conseguiu concluir a sua tarefa, nunca se sentiu capaz, devido à própria natureza dos acontecimentos nela narrados, o que faz do Génesis um livro muito particular e de interpretação extremamente difícil. Santo Agostinho considerou que o ideal da interpretação literal corresponde à compreensão da mente do autor bíblico, facto importante porque aqui S. Agostinho possibilita a existência de uma diversidade de interpretações. Outro factor determinante foi o facto de S. Agostinho defender que nos estritos limites da interpretação literal, uma mesma passagem pode ter várias leituras, sem se estar a referir à interpretação alegórica, mas sim a várias interpretações que podem ser possíveis dentro do sentido literal próprio.
Claro está que os copernicanos apoiaram-se fortemente neste pluralismo hermenêutico de S. Agostinho, porque permitia superar certas passagens de interpretação literal que os defensores do geocentrismo citaram em favor da sua posição, como também servia para justificar a pretensa redescoberta do sistema copernicano. Contudo os critérios exegéticos de S. Agostinho foram insuficientes para atenuar a polémica, uma vez que ambas as partes se acusaram mutuamente de projectar na Bíblia as próprias opiniões cosmológicas, em si mesmas estranhas à intenção dos autores bíblicos. Os copernicanos acusaram os defensores do geocentrismo de criarem um círculo hermenêutico vicioso. Os copernicanos encontraram a solução para o círculo hermenêutico uma vez mais em S. Agostinho, já que este reconheceu alguma autoridade aos heréticos, quer no campo científico quer no filosófico, relativamente a factos cosmológicos.
           
3 – Um círculo hermenêutico vicioso

Uma das acusações que os defensores do geocentrismo fizeram aos copernicanos foi de desvirtuarem o sentido das proposições bíblicas, ao que estes responderam invertendo o sentido da acusação, revelando que a leitura que os anti-copernicanos faziam da Escritura, foi desde o inicio influenciada pelas suas opiniões filosóficas ou teológicas, fundamentadas num sistema estranho à Escritura, na filosofia natural de Aristóteles. O que levou a lerem na Bíblia aquilo que nela projectam, criando um circulo vicioso de que não se aperceberam. Galileu vai adiantar uma solução para este círculo vicioso fundamentando-se mais uma vez na autoridade de S. Agostinho, que considerava que algumas passagens da Sagrada Escritura podem ser legitimamente determinadas por dados externos à Bíblia, sempre que isso não contrarie a analogia da fé e da Escritura. Apoiado pelo comentário de S. Agostinho, Galileu afirma que, quando uma proposição sobre a natureza é comprovada pela demonstração natural e pelas matemáticas, não pode nunca contrariar a Escritura. Era o caso da revelação de Copérnico, que não se baseava em opiniões subjectivas, mas em observações dos fenómenos e em rigorosos cálculos matemáticos, o que tornaria legitimo partir do estudo da natureza e interpretar a Escritura em função dos resultados de tal estudo. Galileu reforça a sua posição com uma nova citação de S. Agostinho «quando uma determinada interpretação for claramente contrariada pela razão ou pela experiência, é tal interpretação que deve ser declarada errada e não a Escritura» (S. Agostinho, 47), S. Agostinho refere ainda que se tal acontecer, «tal ensinamento nunca foi o da Sagrada Escritura, mas era pelo contrário, uma opinião expressa pelo homem na sua ignorância» (S. Agostinho, 47). Este foi sem dúvida um forte apoio às pretensões dos copernicanos.
            Os defensores do geocentrismo vão-se defender-se recorrendo também a S. Agostinho, invocando passagens do comentário Doutrina Cristã, onde S. Agostinho afirma que, «nos casos em que se tem de explicar passagens obscuras, elas devem ser explicadas com a ajuda de outras de sentido mais claro» (S. Agostinho, 48), afirmando também que é melhor seguir este método que confiar apenas na razão. Desta forma, os anti-copernicanos conceberam que os argumentos de Galileu eram inaceitáveis, já que implicavam que o sentido de algumas passagens bíblicas não podia ser encontrado directamente na Escritura, a qual era assim colocada numa posição de dependência em relação à investigação filosófica e científica. Assim, e tal como S. Agostinho, reiteram que a compreensão das afirmações da Escritura deve ser procurada nela mesma e não fora dela, deveria ser esta a prática hermenêutica a ser seguida.
            Sabendo de antemão que os adversários podiam usar estes argumentos, esclareceram previamente este ponto, mostrando que é possível harmonizar aquele princípio da exegese, com a necessidade de ter em conta os dados filosóficos e científicos, recorrendo a um outro princípio exegético, o da finalidade primária da Escritura.

4 – Finalidade principal da Escritura

            Rético concorda com os defensores do geocentrismo, que a verdadeira compreensão das proposições da Escritura devem ser procuradas nela, de acordo com o Espírito Santo. Nesta base defende que os copernicanos não estudam a Bíblia como um livro filosófico, mas como um livro em que o Espírito Santo quis ensinar algo necessário à salvação. Recorrendo novamente a S. Agostinho, Rético sustenta que a Escritura evita descrições exactas em questões relacionadas com a natureza, uma vez que estas questões não contribuem para a salvação de ninguém. Galileu no seguimento deste raciocínio vai também citar S. Agostinho, que depois de dar uma explicação sobre a configuração e o movimento do céu, afirma que «Mas eu não tenho tempo para discutir tal questão, nem penso que isso aproveite àqueles a quem desejo instruir sobre questões relacionadas com a sua salvação e a da Igreja» (S. Agostinho, 50). Galileu vê que, da mesma forma que S. Agostinho deixa em aberto as questões relacionadas com a configuração do céu por serem complexas e irrelevantes para a salvação, o mesmo raciocínio pode ser aplicado à questão do movimento do sol e da terra.
            Campanella tem uma atitude ainda mais crítica em relação à prática hermenêutica de S. Agostinho, acusando-o de não ter respeitado o princípio da separação entre o aspecto religioso e o filosófico-cientifico, por ele mesmo anunciado, tendo assim formulado um silogismo incorrecto. O silogismo a que se refere Campanella é;
«A Escritura e a ciência têm objectos diversos:
 A existência de antípodas é objecto da ciência:
 Logo, não é objecto da Escritura».

            Campanella afirma que S. Agostinho tomou uma posição correcta quanto à premissa maior, acerca das esferas separadas da Escritura, mas contudo errou quando negou a existência de antípodas, com base na Escritura. Já Copérnico tinha chamado a atenção para esta incorrecção, principalmente depois das viagens marítimas dos navegadores portugueses ao hemisfério sul, e de terem confirmado a existência de habitantes. Santo Agostinho pensava que se os antípodas existissem não seriam descendentes de Adão, a constatação deste facto iria contra a Escritura. Por isso considerou natural resolver uma questão em si de carácter científico, com base numa exigência da Escritura e da fé. Isto mostra até que ponto era difícil separar as questões filosóficas-científicas das que se referem à fé e aos costumes, de que fala o Concílio de Trento. Esta questão foi analisada a fundo por um ortodoxo tradicional, o jesuíta Riccioli.

                        5 – Riccioli: defesa sistemática do geocentrismo

            Riccioli não se deixou convencer pelas constantes citações que os copernicanos fizeram dos comentários de S. Agostinho, e fez uma análise profunda dos argumentos utilizados, concluindo que esses argumentos eram não só inconclusivos como ilegítimos.
            No que se refere à finalidade primária da Escritura, Riccioli cita os mesmos textos de S. Agostinho que Rético utilizou para fundamentar a separação das esferas religiosas e filosófico-cientifico, no contexto das proposições bíblicas. Se Riccioli concorda com os copernicanos quanto à finalidade primária da Bíblia, estes interrogaram «como podia o movimento do Sol e da Terra estar relacionado com questões de moral ou de salvação eterna» (p53). Riccioli responde afirmando o sentido hermenêutico que deve prevalecer na leitura da Escritura relativamente a passagens que tratem do movimento do Sol e da Terra, que é o sentido literal, porque se for analisada de outra forma a inerrância bíblica estaria seriamente ameaçada. O que a acontecer levava ao desvalor da Escritura, não só nessas passagens como também às relacionadas com questões de moral e fé. Riccioli fundamenta a sua posição em S. Agostinho «há o perigo de que o homem ignorante no que se refere à Revelação Divina, descobrindo na Escritura, ou ouvindo acerca dela, algo que parece contradizer o conhecimento que ele possui, recuse aceitar o que relaciona com outras questões, nas quais a Escritura oferece úteis admonições, descrições ou relações. Em poucas palavras, no que respeita à configuração do céu, etc.» (p53). Riccioli com um acto de astúcia termina a citação com um etc., uma vez que precisamente a seguir S. Agostinho refere aquela que é a tese dos copernicanos, ou seja, que as questões relativas à configuração do céu não foram reveladas pelo Espírito Santo por não serem relevantes para a salvação eterna. Riccioli fez desta forma um uso ilegítimo das palavras de S. Agostinho.
            Riccioli encontra em muitas passagens de S. Agostinho afirmações contra o heliocentrismo; «Quando para nós é noite, o Sol ilumina com a sua presença aquelas regiões do mundo através das quais ele regressa do acaso ao nascente. É por isso que durante 24 horas há sempre sol numa parte e trevas noutra» (p54). «As horas, os dias, e os anos que se sucedem regularmente, e aos quais estamos habituados, não seriam possíveis sem o movimento dos corpos celestes (…) os dias são pois contados a partir do movimento do Sol, de nascente para poente» (p54). Profundos conhecedores da Bíblia e das palavras de S. Agostinho, os copernicanos responderam com outro princípio da exegese bíblica, o princípio da acomodação.

                        6 – O princípio da acomodação

            É um argumento que fundamenta a interpretação figurada da Escritura, e que sempre esteve presente na exegese bíblica. Este princípio consiste em que os autores bíblicos conheciam bem todas as verdades reveladas na Escritura, mas tiveram que acomodar a sua linguagem à capacidade de compreensão de todas as culturas e mentalidades. Também S. Agostinho tinha em conta este princípio, reconhecendo que a Escritura tinha de se adaptar ao conhecimento deste mundo, conhecimento este que foi adquirido através da filosofia e da ciência. Rético desta forma afirma que, «os textos da Escritura que tratam de questões naturais recebem diferentes interpretações, uma vez que eles não foram comunicados pelo Espírito Santo com o mesmo cuidado daqueles dos quais depende a nossa salvação» (p56), reiterando que as passagens relativas ao movimento do Sol, são precisamente uma dessas verdades, deficientemente expressas pelos autores bíblicos, e que é necessário reconstruir a partir dos dados das ciências. Galileu seguindo o mesmo sentido, refere que o movimento da terra é uma das verdades difíceis de explicar porque vai contra aquilo que nos dizem os sentidos. Por isto Galileu menciona que cabe aos defensores do heliocentrismo, que conseguem compreender bem o movimento, comprovar que era isso que estava na mente dos autores bíblicos quando escreveram a Escritura. Curiosamente Galileu desta vez não cita S. Agostinho mas sim S. Tomás, que considerou, por exemplo, que a Bíblia chama “vazio” ao espaço que circunda a terra só para se acomodar à capacidade de compreensão do povo, uma vez que se sabe que a terra está rodeada por ar.
            Desta forma vemos que por um lado Riccioli e os defensores do geocentrismo preferem naturalmente citar os textos de S. Agostinho nos quais a razão humana aparece subalterna em relação à Escritura, entendida em sentido literal, enquanto os copernicanos preferem sobretudo os textos em que S. Agostinho mantém a necessidade de ter em conta os dados da filosofia e da ciência.   

                        7 – Em defesa da credibilidade da Bíblia

            Apesar de estarem de lados totalmente opostos, numa coisa quer defensores do heliocentrismo quer defensores do geocentrismo concordam, que tem de ser salvaguardada, principalmente perante os não crentes, a credibilidade da Sagrada Escritura, como de todas as verdades da fé em geral. Mas embora citem os mesmos textos de S. Agostinho, ambos os lados acusam-se mutuamente de provocarem o desprestígio da Escritura e da fé. Neste ponto podemos uma vez mais encontrar uma passagem de S. Agostinho que vai de encontro às posições dos dois lados, afirma ele «os cristãos deveram ser extremamente prudentes na sua interpretação da Bíblia, para evitarem ser ridicularizados pelos não crentes, cuja preparação filosófica ou científica lhes poderá legitimamente permitir pronunciarem-se acerca de tal interpretação» (p60). Santo Agostinho considera que está em causa não só a credibilidade da Escritura, mas também a salvação dos não crentes, os quais, vendo a Escritura deficientemente interpretada pelos cristãos em questões cosmológicas, poderão ser levados a pensar que ela erra em tudo o mais, sendo assim impedidos de crer naquilo que foi escrito precisamente para a sua instrução e salvação.  
            A opinião de S. Agostinho foi evidentemente aceite por ambas as partes em conflito, mas de pouco serviram para a resolução do conflito, uma vez que foram entendidas de forma diversa, assim sendo continuaram as acusações de parte a parte de descredibilizarem a Escritura.

                        Conclusão

            A polémica entre copernicanos e anti-copernicanos acerca da interpretação da Escritura, foi um diálogo de “surdos”. Tanto Rético como Galileu procuraram justificar os seus propósitos com citações de S, Agostinho, cuja virtualidade hermenêutica, embora particularmente adaptada para servir tal justificação, não pôde nunca servir para constituir um conclusivo instrumento de diálogo e de esclarecimento de ideias. Facto que sucedeu devido à dificuldade de decidir entre a visão metafísica do universo, fundamentada na tradição filosófica aristotélica-tomista, e a emergente visão mecanicista baseada numa nova concepção acerca não só da dinâmica do universo, como também da estrutura material dos corpos celestes. Era uma alternativa que contrapunha um universo perfeitamente organizado, espelho fiel da perfeita organização conceptual filosófica e teológica cristã herdada da idade média, na qual tudo, desde o mais ínfimo dos seres cristãos até à fonte de todo o ser, Deus, tinha o seu lugar numa coerente hierarquia.
            O facto de S. Agostinho não se integrar na tradição aristotélica, então dominante entre os defensores do geocentrismo, desempenhou certamente um papel importante na escolha que dele fizeram os copernicanos, para conferirem maior autoridade ao seu sistema cosmológico e à sua proclamada ortodoxia teológica.       


Ricardo Carvalho