sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Marx e a crítica à religião


Marx considerava que a crítica à religião era fundamental para poder realizar uma crítica ao estado geral em que se encontrava a Alemanha. No seu entender essa crítica já estava quase terminada, os pensadores anteriores, como por exemplo Feuerbach, já teriam realizado o essencial dessa crítica. Ou seja, Marx concordava com a tese de que foi o homem que criou a religião, e não o contrário.

“O homem que tiver encontrado na realidade fantasmagórica do céu, onde procurava um super-homem, apenas o reflexo de si próprio, não se contentará mais com encontrar só a aparência de si próprio, o não-homem, quando procura e deve procurar necessariamente a sua verdadeira realidade”. p. 45
           
O homem não se encontra fora do mundo, o homem está neste mundo, no Estado, na sociedade. E é através deste mundo que o homem cria a religião, "consciência invertida do mundo”. A religião seria a justificação universal para este mundo, o homem viu na religião o seu fundamento, a “realização fantástica do ser humano”. Uma luta contra a religião torna-se desta forma numa luta contra esse mundo.
            Para Marx o homem oprimido vê na religião a sua salvação, e não se apercebe que a sua angústia religiosa é a sua angústia real, neste sentido afirma que a religião “é o ópio do povo”.
            Para o homem ser verdadeiramente feliz tem de renunciar à felicidade ilusória, dar-se conta da realidade em que se encontra e não se deixar adormecer por ilusões. A crítica à religião tem o intuito de por o homem a pensar, para que seja ele a construir a sua realidade.
Diz Marx:
“A religião não passa do sol ilusório que gravita em volta do homem enquanto o homem não gravita em volta de si próprio” p. 47-4.
           
A crítica eleva-se até aos problemas verdadeiramente humanos. A religião é assim a forma de alienação que tem uma função social e política, que faz esconder e reaver a esperança. O problema da religião não se resolve na natureza, mas na sociedade. A solução para o homem se encontrar consigo mesmo não esta na religião, como Feuerbach defendia, mas na política, na comunidade. O problema da religião está no homem, na sua miséria, na sua história.

“É pois tarefa da história, depois do desaparecimento do para lá da verdade, estabelecer a verdade deste mundo” p. 47.  
“A crítica do céu transforma-se assim em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica política” p. 47.

A partir desta fase, uma vez descoberto o motivo de alienação e a raiz do problema da religião, que é político, Marx começa a analisar o estado da sociedade alemã. Começa por fazer uma crítica à escola histórica do direito, dizendo que esta legitima a situação actual pela de ontem, que qualquer forma de revolta deve ser censurada, porque se a situação se deve ao passado então não é motivo de rebelião. Pelo lado oposto também crítica aqueles que procuram a história da liberdade alemã para lá da sua história. O objecto de Marx é trazer a discussão para terra, porque teoricamente o problema já está refutado, mas agora na prática é preciso destrui-lo, deixar de ser um problema do pensamento para ser um facto de existência real.

“A divisão da sociedade numa multiplicidade de raças que se opõem umas às outras com as suas antipatias mesquinhas, a sua má-consciência e mediocridade brutal, e que os mestres, precisamente pela oposição ambígua e desconfiada de cada uma em relação às outras, tratam sem distinção, ainda que utilizando formas diferentes, como existências concedidas. E, apesar de dominadas, governadas, possuídas, são obrigadas a considerá-lo e proclama-lo como uma concessão do céu!” p. 49.

Marx ao denunciar o actual estado da política, denunciando as suas formas de opressão e acentuando-as, pretende acabar de vez com a ilusão e a resignação do povo.
Para Marx o estado actual da situação em que se encontrava a Alemanha, era reflexo directo do ex-regime, e este era o defeito escondido do estado actual. Ou seja, a luta contra a actual situação é uma luta contra o passado. Marx faz uma caricaturização da situação ao dizer que esse regime no passado se revelou como uma tragédia nos diversos países, e que agora na Alemanha se revela a sua comédia. Foi tragédia enquanto representava o poder existente no mundo e a liberdade era apenas uma ideia pessoal. Este regime tinha de lutar com um mundo que apenas era devir, como afirmava Hegel, e isso representava um erro histórico universal mas não pessoal. Daí a sua queda ser trágica. O actual estado do regime na Alemanha não era mais que a fase última desse ex-regime que se quis iludir fingindo que não o era, e a fase última de uma forma ultrapassada da história mundial é a sua comédia. Marx faz uso do cinismo para demonstrar que é necessário efectuar uma separação com o passado, uma vez que a comédia permite efectuar essa separação com alegria.
Contudo, chegada a fase em que já se olha verdadeiramente para os problemas do homem, e não para nada abstracto, descobre-se que o problema político-social não tem a sua raiz apenas na situação da Alemanha, mas que vem de fora também, é um problema da época moderna. Marx dá o exemplo das relações da indústria, do mundo da riqueza, com o “proteccionismo alfandegário, do sistema proibitivo, da economia nacional” p. 51. Com a substituição do homem pela matéria, começa-se na Alemanha a reconhecer a soberania do monopólio no interior porque lhe concedem a soberania no exterior. A Alemanha encontra-se atrasada em relação aos outros países, aquilo que nos outros países é visto como insuportável, na Alemanha é visto como futuro promissor.

“Quando a alternativa posta em França e na Inglaterra é: economia política ou domínio da sociedade sobre a riqueza, na Alemanha é: economia nacional ou domínio da propriedade privada sobre a nacionalidade” p. 52.

O que se passa na Alemanha é que existe um conflito crítico com o reflexo filosófico da situação actual, ao contrário de outros países em que o conflito com a situação actual é prático. E por isso deve-se submeter à crítica não só a situação actual, mas também a continuação abstracta do estado, ou seja, o povo alemão não se pode restringir a negar as suas condições políticas reais, nem deve realizar imediatamente aquilo que pensa. Desta forma, não se pode negar a filosofia sem a realizar, nem se a pode realizar sem a anular. Para esta crítica da filosofia alemã do estado e do direito, quem mais contribuiu foi Hegel. Para quem o Estado era algo abstracto, transcendente, cuja realidade se encontra além, e o homem não era o homem real, mas sim um homem imaginário.

 “A crítica da filosofia especulativa do direito não busca em si própria a sua finalidade, mas extravasa para tarefas para cuja solução só há um meio: a prática” p. 56.

Marx argumenta então que a teoria se pode tornar material, quando esta se apodera das massas, e apodera-se das massas quando se demonstra através dos homens, e isso acontece quando se torna radical, e ser radical é tomar as coisas pela raiz, e para o homem a raiz é o próprio homem. A maior prova do radicalismo da teoria alemã, ou seja, a sua energia prática, é a que concebe a anulação resoluta e positiva da religião.

“A crítica da religião conduz a este ensinamento: que o homem é o ser supremo para o homem, isto é, ao imperativo categórico de alterar todas as relações sociais que fazem do homem um ser humilhado, servil, abandonado, desprezível…” p.56.

A emancipação teórica é historicamente também prática, uma vez que o passado revolucionário da Alemanha é teórico, com a reforma, e esta revolução começou na cabeça de um monge, tal como esta começa na cabeça de um filósofo.
Foi o que fez Lutero, que substituiu a servidão por devoção, pela servidão por convicção. Libertou o homem da religiosidade exterior, tornando esta a consciência do homem. E do mesmo modo que o protestantismo transformou leigos em clérigos, emancipando os príncipes, também a transformação em homens, pela filosofia dos alemães, clericalizados, emancipará o povo. Contudo, a secularização dos bens não se resolverá na abolição da igreja, porque esta falhou, mas na filosofia.
A distância que existe entre as exigências do pensamento alemão e aquilo que é a realidade alemã constitui um obstáculo para uma revolução alemã radical, uma vez que as revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A Alemanha não conseguiu a emancipação política como outros países conseguiram, não conseguiu passar da teoria à prática, apenas acompanhou pela actividade abstracta os povos modernos, e isso fez com que partilhasse com eles os seus sofrimentos, mas não as suas alegrias, e por isso quando a decadência europeia for uma realidade a Alemanha acompanhara essa decadência sem nunca ter experimentado a emancipação europeia.

“Poder-se-á compará-la a um fetichista roído pelas doenças do cristianismo” p. 59.

Para a Alemanha ultrapassar esta situação necessita de derrubar a barreira geral da realidade política vigente. Afirma Marx que “não é a revolução radical que é um sonho utópico para a Alemanha, não é a emancipação humana universal, mas, pelo contrário, a revolução parcial, a revolução unicamente política” p.60, a que deixará de pé os pilares do edifício. Uma tal revolução parcial consiste em:

“Uma parte da sociedade civil emancipa-se e consegue dominar o conjunto da sociedade, uma classe determinada empreende, a partir da sua situação particular, a emancipação geral da sociedade” p. 60.

Esta libertação só funcionará se resultar numa igualdade de toda a sociedade. Só em nome dos direitos gerais da sociedade é que uma classe particular pode reivindicar o domínio geral. Para que estes dois factores coincidam é fundamental que se concentrem numa outra classe todos os defeitos da sociedade, é preciso expor outra classe ao erro universal, como diz Marx, “é preciso que uma esfera da social particular personifique o crime notório de toda a sociedade” p. 61, para que a separação dessa classe seja entendida como a libertação total.
Contudo, no contexto da Alemanha falta quer uma quer outra classe. As relações das várias esferas da sociedade alemã levou a que cada uma tome consciência de si e se instale ao lado das outras, não por uma pressão, mas pelo aparecimento ocasional de classes mais baixas, sobre as quais exerce pressão. Desta forma, nenhuma pode emancipar-se à outra, porque se por um lado exerce pressão abaixo, por outro lado é pressionada de cima. Marx faz então várias distinções entre a França e Alemanha, e diz por exemplo que na França qualquer classe do povo é idealista político, e não tem inicialmente consciência de si enquanto classe particular, mas enquanto representante das necessidades sociais em geral. Isto permite que todas as classes sociais tenham uma função emancipadora, até uma classe particular do povo atingir a liberdade social, o que não acontece na Alemanha.
Assim, a possibilidade de emancipação alemã reside na formação de uma classe da sociedade civil, que não seja uma classe da sociedade civil, de um grupo social que seja a dissolução de todos os grupos, de uma esfera que não possa orgulhar-se de um título histórico mas apenas de um título humano.

“Que seja a derrota total do homem e não possa pois reconquistar-se a si próprio sem uma reconquista total do homem.
Esta dissolução da sociedade realizada numa classe particular é o proletariado” p. 64.
“A filosofia encontra no proletariado as suas armas matérias como o proletariado encontra na filosofia as suas armas intelectuais, e, desde que a luz do pensamento atinja até ao coração esse solo popular virgem, realiza-se a emancipação que fará, dos Alemães, homens” p. 65.       

Para concluir dizer que; se para Marx a religião representa uma alienação, também o representa, embora de outro modo, a filosofia alemã, porque esta, tal como a religião, dissociam o homem da realidade reduzindo-o a um mero espectador do processo no qual ele próprio tem o papel principal. A religião, que impede o homem de procurar a sua felicidade no único lugar onde a pode encontrar, deve ser atacada e censurada como nociva. Mas a crítica da religião tem pouco valor se não estiver acompanhada da crítica política e social, já que, de facto, ataca os efeitos mas não a causa.

Ricardo Carvalho