sábado, 26 de março de 2011

Poderá a cultura estreitar a diferença entre o homem e o animal?

         Será a cultura intrínseca ao homem, ou poderá ser alargada à escala animal? Esta questão tem sido analisada no seio da etologia e antropologia. Neste ensaio tenho como objectivo procurar analisar até que ponto é legítimo falar-se de cultura nos animais e, até que ponto esse reconhecimento serve para reabilitar o estatuto dos animais face ao ser humano. Tendo como referência a teoria de Dominique Lestel, filósofo e etólogo, que considera ser necessário analisar o fenómeno cultural, não pela vontade de separar o que é próprio dos homens, mas antes analisá-lo a partir de uma perspectiva evolucionista e pluralista, torna-se necessário perceber qual ou quais os pontos em comum que a definição de cultura abarca quer no homem quer no animal.
Cicero, no séc. I a.C., refere-se à cultura como a tarefa de desenvolver-se para a humanidade, tendo esta definição três conotações distintas: aquilo que faz com que o homem seja um homem; a preocupação do homem pelo homem no sentido da sua mútua vinculação; aquilo pelo qual o homem se torna verdadeiramente homem, a sua formação ou educação, a paideia. A cultura era identificada com o espírito (anima), seria a acção que o homem exerce sobre o meio ou em si mesmo, fruto duma interpretação pessoal e coerente da realidade, visando o seu aperfeiçoamento. No renascimento, a expressão cultura como anima é referida essencialmente como meio ou instrumento principal das literaturas, humanidades e letras. Em 1871, com E. B. Tylor, um evolucionista cultural, a expressão cultura atinge uma universalização. Baseado nas teorias evolucionárias de Charles Darwin, reintroduziu o termo de anima no senso comum. Hoje em dia a compreensão de cultura engloba a formação do homem como homem, ou seja, a educação das suas faculdades, sejam elas intelectuais, morais ou religiosas, designa também o conjunto de meios para actualizar ou realizar as potencialidades humanas, e identifica-se com um significado etnológico-etnográfico, ou seja, é um «conjunto de atributos e de produtos das sociedades e do género humano, por conseguinte, extra-somáticos e transmissíveis por meios diferentes da hereditariedade biológica e que faltam essencialmente nas espécies sub-humanas quando são características da espécie humana, enquanto esta se agrega em sociedades», (Kluckhohn, in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 580). A cultura está também relacionada com factores e condições em que se pode afirmar o homem como um ser criador de cultura. A sua qualidade de homofaber, um ser criador, dotado de um psiquismo superior ao psiquismo animal mais elevado, faz com o homem se revele como inventivo nos mais diversos domínios: tecnológicos, científicos, artístico, literário, filosófico e religioso, ou seja, um ser dotado de desejos e aspirações, que sente a necessidade de se exprimir. Esta noção surge da ruptura entre natureza e cultura, e que dá lugar à expansão de múltiplas formas de civilizações. Devido a este desvio, a cultura acabou por designar um conjunto de normas colectivas, mas também a valorização individual que distingue um indivíduo dos seus semelhantes. Neste sentido, a cultura identifica-se igualmente com os meios, isto é, os instrumentos, costumes e instituições dos grupos sociais, ou o uso de tais meios.
Na antropologia contemporânea a cultura assimila-se com a forma de sociabilidade que se encontra no homem. Os primatólogos «definem um comportamento cultural como um comportamento que não é determinado nem pela genética nem pelas características do ambiente em que o animal vive, e que se dissemina por transmissão social» (Lestel, 2006, 8-9). Para um antropólogo, um comportamento cultural não é estabelecido por causas mas sim por razões, característica que também os etólogos partilham. Quer nuns, quer noutros, uma cultura tem de implicar sempre um sujeito. Lestel insere-se nesta linha de pensamento, «não existe cultura sem sujeito». Assim, para poder sustentar a sua teoria – que considera ser necessário analisar o fenómeno cultural, não pela vontade de separar o que é próprio dos homens, mas antes analisá-lo a partir de uma perspectiva evolucionista e pluralista – tem de reconhecer que certos animais são detentores de subjectividade, de consciência de si. Desta forma, torna-se necessário fazer uma análise do que significa ser sujeito.
Antes de se referir a um indivíduo real, o termo sujeito correspondia filosoficamente a preocupações lógicas que tentavam definir os critérios formais de um discurso verdadeiro. Em Aristóteles, o termo sujeito expressa um valor mormente lógico e metafísico. Na lógica, o sujeito refere-se e opõe-se ao predicado ou atributo. Na metafísica, o sujeito é ambíguo, na medida em que tanto pode significar a matéria indeterminada como o ser determinado. Neste sentido, o sujeito expressa o suporte, o substrato integral e relativamente permanente que relaciona e unifica as qualidades sucessivas que o dispersam pelo espaço e tempo. Até à idade Moderna a conotação de sujeito esteve sempre relacionado com o valor substancial, ou seja, sujeito corresponde a: substância, essência, hipótese, etc. Assim, na escolástica, o termo subjectivo significava o ser que existe por si, independente do pensamento, o ser que de facto pertence às coisas, enquanto o ser objectivo significa aquilo que subsiste apenas no pensamento com uma existência apenas ideal ou intencional. Esta concepção chegou até Descartes, que a via da mesma forma. Embora, com Descartes se dê uma evolução histórica do termo sujeito, que passará a englobar tudo o que o pensamento moderno designa por subjectividade. De sujeito-abstracto do enunciado, passa a sujeito do princípio e causa da enunciação. O sujeito que pensa é o único que se reconhece como existente, capaz de tomar acções a partir de si mesmo, firmando desta forma uma união necessária entre a existência e a subjectividade do “eu”. A partir deste momento, o sujeito é consciência pensante, por oposição ao objecto, que é realidade em si independente do cogito. Esta derivação do conceito de sujeito, de subjectivo para subjectividade, teve o seu ponto crucial na filosofia kantiana e no idealismo posterior. De Descartes a Husserl, passando por Kant o idealismo moderno formou-se a partir da análise das condições de possibilidade da função do sujeito.
Já vimos o que poderá ser cultura e a sua evolução histórica. Que esta não pode ser desprovida de um sujeito. Assim, está lançado o ponto de partida para a análise da hipótese de os animais serem detentores de comportamentos culturais. É necessário analisar se os animais têm algum tipo de inteligência e subjectividade. Em Descartes, no fundo o propulsor da subjectividade, o animal é uma espécie de robot autómato, que não tem capacidades de atingir uma subjectividade. Kant afirmava que os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para um fim. Ora, o quadro estabelecido por Charles Darwin sobre a evolução progressiva, comparada entre as espécies animais ditas inferiores e os primatas, serviu e continua a servir de ponto de referência para discutir a questão da inteligência animal. Autores como Merleau Ponty, Donald Griffin e Jacques Vauclair não vêm qualquer problema em admitir que os animais, tal como os homens, também são seres com inteligência e com subjectividade, com uma vida mental, obviamente à sua escala. Em Dominique Lestel encontra-se uma defesa mais vinculada da ideia de que não é só a humanidade que merece ser considerada sujeito e produtora de cultura. 
Lestel, no prefácio do seu livro As Origens Animais da Cultura, defende a ideia que a etologia contemporânea efectivou uma grande revolução, que se equivale às revoluções na física quântica e na biologia molecular. Contudo o seu alcance ainda não foi totalmente percebido pelos etólogos. É aquilo que designa por «a revolução esquecida da etologia contemporânea» (Lestel, 2006, 9). As representações clássicas do animal já não são sustentáveis na medida em que a oposição entre natureza e cultura deixou de ser suficiente para explicar a diferença que separa o homem do animal. A partir da reavaliação que faz das noções de utensílio, de comunicação e racionalidade, aliado à análise que faz do comportamento de certas espécies de animais, Dominique Lestel apercebe-se que estes também têm capacidade de comportamentos culturais. Isto determina que os comportamentos culturais não são exclusivos do homem, não constituem uma ruptura exclusiva do ser humano mas emergem progressivamente na história do ser vivo. Reconhece que actualmente ainda não admitimos que o animal tem cultura, apenas se estuda o que levou o homem a tornar-se um ser cultural, ou seja, “como o homem se tornou homem”. Lestel define a cultura como um fenómeno que é inerente ao ser vivo, aos seus comportamentos, e que o desenvolvimento destes comportamentos é o que possibilitou que um sujeito emergisse da animalidade. Desta forma, a cultura não pode ser vista como oposta à natureza, mas sim como uma pluralidade que se encontra em diversas criaturas de espécies muito diferentes. A ideia de que existem animais, como os golfinhos, aves, macacos e chimpanzés com comportamentos culturais não é nova, no último século muitos etólogos já o admitiam, contudo, em que medida serão estas “culturas animais” semelhantes à do homem?
No seio da etologia os animais foram sempre analisados e observados tendo por princípio os factores behavioristas. Só mais recentemente, com a emergência da ecologia comportamental e os longos estudos efectuados no terreno é que se começou a mudar de paradigma. Isto possibilitou verificar uma variação de comportamentos livres no animal. A partir daqui, Lestel admite que surge uma nova ideia, de que a razão começa a substituir as causas na organização comportamental do animal. É possível verificar-se a manifestação da subjectividade dos animais com o uso dos utensílios, a que o autor chama “mediação da acção”. Utiliza esta designação porque o termo utensílios lhe parece confuso e pouco operacional em etologia. A mediação da acção consiste «nos suportes ecológicos que permitem ao animal transformar os seus desempenhos e as suas competências ao alterar a natureza do seu desenrolar, ou ao alargar o seu campo de acção» (Lestel, 2006). Ou seja, não é mais que os meios para o animal aperfeiçoar a sua acção sobre o mundo. É desta forma, através dos estudos das variações comportamentais, que os etólogos começam a interrogar-se se os animais não teriam cultura. Para os antropólogos apenas o homem tem cultura, porque apenas este possui uma complexa comunicação de linguagem. Ademais, apenas é legítimo falar de cultura numa sociedade de sujeitos, e como os animais não têm sujeito não se lhes pode atribuir cultura. Face a estes argumentos Lestel tem a necessidade de mostrar até que ponto os animais também podem atingir uma complexidade de comunicação e que a estes também se lhes pode atribuir a designação de sujeito.
Começa por distinguir uma racionalidade instrumental de uma racionalidade expressiva no animal. Isto para demonstrar que o animal quando comunica nem sempre o faz de forma instrumental (comunicar uma mensagem), pode o animal também expressar-se (exprimir um “Eu”)? Alguns estudos sugerem que sim, como por exemplo, o canto de certos pássaros. Este facto contribui para também ele denunciar uma subjectividade nos animais. Como já referi anteriormente, que Lestel admite que a razão começa a substituir as causas na organização comportamental do animal, este facto insere-se perfeitamente na sua definição de sujeito, que não é mais do que; «todo o animal que se comporta em função da razão das suas escolhas, das suas interpretações e não somente em função de causas mecânicas» (Lestel, 2006). Desta forma, pode-se falar de sujeito em certos animais, como por exemplo, os chimpanzés, através da verificação da mediação da acção nos seus comportamentos. Assim, o animal passa a ser um sujeito de cultura quando há variação comportamental de seres da mesma espécie no mesmo habitat. Se no mesmo espaço, membros da mesma espécie e geneticamente iguais, se verificar que há um determinado grupo que evolui, então pode-se falar em cultura. Dominique Lestel não é o único a pensar desta forma, autores como; Jacob von Uexküll, Frederick Buytendijk, Adolf Portmann e Hans Jonas, de inspiração fenomenológica, também compartilham a ideia de que o animal pode ser um sujeito. Uma vez que o fenómeno cultural é visto como um fenómeno de individualização e de complexidade comportamental progressiva, de que a cultura humana constitui um caso particular.
De tudo que acabou de ser exposto, é possível agora responder à pergunta formulada no início do ensaio. Quer Lestel, quer outros autores mencionados, demonstram que de facto a cultura poderá não ser uma propriedade restrita apenas à humanidade, todavia, é necessário que se definam outros factores fundamentais para se poder ver num animal um “sujeito de cultura”. Porque parece-me que Lestel faz um uso abusivo daquilo que, quer cultura quer sujeito significam e englobam. Como ficou demonstrado no início do ensaio, cultura e sujeito significam muito mais que aquilo que Lestel sustenta. Ele apenas faz uso de uma parte da definição para sustentar a sua teoria, fazendo uma adaptação abusiva. É claro que este é um tema ainda em aberto cuja discussão poderá ainda estar no início, mas torna-se necessário que no futuro uma proposta de “cultura animal” seja mais abrangente. Contudo, julgo que o grande mérito de Lestel passa pelo facto de ter conseguido dar mais um contributo para estreitar a dicotomia entre o homem e o animal. 

Ricardo Carvalho

Abordagem simples sobre o Espectro Invertido

          
Espectro Invertido em Locke

            Locke vai analisar se as ideias, sendo simples imagens ou percepções das nossas mentes, podem ser em si verdadeiras ou falsas. Ele parte da verdade ou falsidade das nossas ideias, para perceber a existência real das coisas. Locke vai classificar as ideias simples como; “percepções que Deus nos permitiu receber ao atribuir poder aos objectos exteriores para que as produzam em nós, através de leis e formas estabelecidas adequadas à sua sabedoria e vontade, embora sejam incompreensíveis para nós, a sua verdade apenas reside nas imagens que causam em nós, e têm de ser adequadas a esses poderes que ele colocou nos objectos exteriores, ou então não poderiam ser causadas em nós”. É desta forma, que Locke concebe o modo como distinguimos os objectos, através da sabedoria de Deus, que determinou marcas para distinguir as coisas, e podermos fazer escolhas. E esta distinção não altera a natureza da nossa ideia simples, não altera o facto de, pensarmos se o azul está na própria violeta ou na nossa mente ao visualizarmos uma violeta. O azul, quer seja essa cor real ou apenas uma textura peculiar que causa em nós essa ideia, serve apenas como marca de distinção entre os objectos.
            É nesta sequência que surge o problema do espectro invertido, sobre o qual incide este ensaio. No Livro II, Cap. XXXII, § 15, Locke continua a sua reflexão sobre as ideias verdadeiras ou falsas, e afirma que;
…se através da diferente estrutura dos nossos órgãos estivesse ordenado que o mesmo objecto devesse produzir ideias diferentes nas mentes de diferentes homens em simultâneo, por exemplo, se a ideia que uma violeta produziu na mente de um homem, através dos seus olhos, fosse a mesma que um malmequer produziu num outro homem e vice-versa...
isso não reflecte nenhuma falsidade em nenhuma das ideias. Isto acontece porque não é possível conhecer a mente de terceiros, não se podem entender as imagens que foram produzidas pelos órgãos na mente de outra pessoa. Todos os objectos que contenham a textura de uma violeta ou um malmequer, causam constantemente as ideias a que chamamos azul e amarelo respectivamente, e independentemente das imagens que estejam na nossa mente, somos capazes de distinguir frequentemente as coisas através do uso dessas imagens. Essas distinções são classificadas através do termo azul e amarelo, de modo que as ideias produzidas pelas flores na nossa mente pareçam as mesmas que são produzidas na mente de outras pessoas. É este o problema do espectro invertido. Se a experiência subjectiva de um indivíduo ao percepcionar uma cor for igual à experiência de um outro indivíduo quando este percepciona outra cor, não há forma de se verificar na realidade se o que um percepciona é o mesmo que o outro percepciona.
            No fundo, o que Locke sugere com o espectro invertido é que, os órgãos sensoriais de uma pessoa podem ser diferentes das de outra, de tal forma que, em determinadas circunstâncias, onde uma percepciona a cor azul onda percepciona amarelo. Este problema lançou as bases para uma profunda e difícil discussão no seio da filosofia da mente, acerca da existência autónoma de aspectos subjectivos da mente humana.

Outras Mentes

            A partir de um ponto do vista do senso comum, quando olhamos para outras pessoas julgamos que elas pensam da mesma forma que nós, que têm os mesmos sentimentos e percepções. Mas será que eu sei realmente o que se passa na mente de outra pessoa? Ou será que só tenho um conhecimento aproximado ou indirecto do que se passa numa mente que não a minha, fazendo uma inferência a partir do que são os meus estados mentais e aquilo que as essas pessoas me transmitem? O meu acesso é apenas a um corpo e a um comportamento, inclusivamente verbal, o qual é especialmente importante em todo o processo. Posso ter acesso ao interior físico do corpo de outro, abri-lo de várias formas, mas nunca à sua interioridade mental, supostamente idêntica à minha. Mesmo numa operação cerebral não se encontram “seres mentais” no seu interior, tais como pensamentos e sentimentos, os quais, no entanto admito que possua, pelo menos se lido com essa com pessoa. Entidades deste tipo só se encontram em mim, pelo meu acesso directo à minha mente.           As razões que conduzem ao cepticismo acerca das outras mentes são importantes para a filosofia da mente em geral.  
Os filósofos atribuíram o termo qualia para designar as qualidades da experiência subjectiva, as qualidades fenoménicas tal como são experienciadas, ao facto de a vida mental ser sentida. Só existem qualia em primeira pessoa. É aqui que entra o problema do espectro invertido de Locke. Por exemplo, duas pessoas podem ter o mesmo vocabulário para as cores e discriminar cores da mesma maneira, ou seja, elas chamarão vermelhas e verdes às mesmas coisas nas mesmas ocasiões, e no entanto uma delas pode ter visto cores invertidas, por exemplo vermelho por verde e verde por vermelho. Nesse caso, nunca se saberia. De outra forma, se uma pessoa tivesse um comportamento absolutamente indistinguível do de todas as outras pessoas, ela poderia ser totalmente desprovida de qualia sem que isso alguma vez se descobrisse. Se o primeiro caso é associado ao espectro invertido, o segundo é conhecido na filosofia da mente como o problema do zombie.

Teorias Materialistas da Mente

            Um ser humano é composto por átomos, organizados de forma complexa, que obedece às leis da física e da biologia. O materialismo é uma teoria da mente que afirma que isto é tudo o que somos. Segundo este materialismo o nosso corpo não está ligado a nenhuma parte espiritual não física. Uma teoria materialista da mente tem como propósito tentar explicar os factos mentais em termos que sejam estritamente físicos. Desta forma uma teoria materialista pode-se desenvolver de duas formas; pode recair sobre aquilo que observamos nas outras pessoas a partir de um ponto de vista do exterior, ou seja, analisando o seu discurso e comportamento. Ou pode fazer o inverso, recair sobre aquilo que ocorre no interior de cada pessoa, ou seja no interior do seu cérebro. A primeira teoria materialista considerada, designa-se por Behaviorismo, à segunda Funcionalismo.

Behaviorismo

            O behaviorismo defende que é possível explicar a natureza dos pensamentos e das emoções unicamente em termos do comportamento. Para os behavioristas os factos mentais são somente factos sobre o discurso e comportamento. Para o senso comum um determinado comportamento poderia ter a sua explicação baseada em acontecimentos mentais internos de alguma espécie, como por exemplo, a fúria, fome, a alegria, etc., contudo para um behaviorista estas explicações «mentalistas» não têm lugar numa visão científica do comportamento humano. A ciência deve trabalhar com aquilo que é publicamente observável. O behaviorismo foi defendido quer na filosofia quer na psicologia. O filósofo que mais destaque teve na abordagem a esta teoria foi Gilbert Ryle (1900-1976). Segundo ele os estados mentais privados não existem. O behaviorismo de Ryle ficou conhecido como Behaviorismo Analítico. Ryle sustentou que, aquilo a que chamamos estados mentais, não passa de comportamentos.
            Os behavioristas defenderam que uma pessoa através do comportamento de outra pode, a partir do exterior, perceber se uma pessoa esta zangada, alegre, com receio ou até mesmo apaixonada com tanta ou mais facilidade que ela própria. Esta ideia pode parecer atractiva, uma vez que muitas das vezes não somos a melhor autoridade para analisar os nossos estados mentais, muitas vezes estamos tristes ou deprimidos e pensamos que não estamos, basta pensar que quando temos uma depressão, a maior parte das vezes, só a reconhecemos depois de irmos a um médico que nos informa desse estado. Além disso, aquilo que por vezes queremos torna-se mais obvio para os outros que para nós mesmos. Assim, os nossos estados mentais parecem que são, de facto, publicamente observáveis, logo não são internos.     
            O behaviorismo era atraente devido à sua postura científica, mas acabou por perder influencia com o passar do tempo. Este insucesso deveu-se a diversos factores que colocaram em causa a teoria, e que tornaram-se em objecções insustentáveis. Foi inclusivamente rejeitada quer pelos filósofos, que não conseguiram lidar com as objecções, quer pelos psicólogos, que substituíram a teoria por projectos cognitivistas.
            Uma das objecções mais proeminentes ao behaviorismo foi precisamente o problema do espectro invertido. Segundo o que já foi dito em cima acerca do problema do espectro invertido, é possível que duas pessoas tenham exactamente o mesmo comportamento e, apesar de tudo, tenham estados mentais diferentes. O comportamento de determinada pessoa, incluindo o verbal, seria indistinguível, por exemplo, quando duas pessoas vissem um objecto com uma determinada cor, vamos supor vermelho, ambas ao serem questionadas acerca da cor, responderiam que estão a ver “vermelho”, e isto aconteceria porque ambas aprenderam a designar essa determinada cor pelo termo “vermelho”, apesar de não estarem a perspectivar a mesma cor.
            Desta forma, o problema do espectro invertido parece mostrar que, apesar do comportamento das duas pessoas ser idêntico, as experiências visuais diferem. Assim, torna-se plausível que não se considere a mente como comportamento.

Funcionalismo  

            Com o fracasso do behaviorismo, muitos filósofos tiveram necessidade de abordar a questão da mente de uma forma diferente. Era necessária uma nova teoria, que pode-se explicar os fenómenos mentais. Assim, desta forma surge uma nova teoria da mente materialista, designada por funcionalismo.
            O funcionalismo é uma teoria relativamente recente, e neste momento é a teoria mais seguida pelos filósofos da mente. A teoria concentra-se no papel funcional dos estados mentais, ou seja, a teoria concentra-se nos dados de entrada e saída e na relação entre os estados internos. Um funcionalista define qualquer estado mental em termos das suas relações típicas com outros estados mentais e dos seus efeitos no comportamento. Assim, um pensamento que ocorra define-se em termos das suas relações com outros pensamentos e com o comportamento. Desta forma, pode-se verificar que o funcionalismo aproveitou algumas características do behaviorismo, como – a de que a actividade mental está em geral intimamente ligada a disposições comportamentais – ao mesmo tempo que admite que os acontecimentos mentais podem efectivamente causar comportamentos.
            O funcionalismo pode ser compreendido com recurso à comparação entre a relação de um computador e o seu programa. Ao falarmos de um computador, temos de falar do seu suporte físico (hardware), e do seu suporte lógico (software). O suporte físico de um computador é aquilo de que ele é feito, monitor, teclado, fios, circuitos, etc. O suporte lógico é o programa, o sistema de operações que o suporte físico executa. O suporte lógico pode ser adaptado para servir em vários sistemas diferentes. O suporte lógico, por norma, é um complicado sistema de instruções dadas ao suporte físico, que pode ser executado de várias formas, atingindo sempre o mesmo resultado.
            Desta forma, o funcionalismo, enquanto teoria da mente, trata do suporte lógico do pensamento e não do suporte físico. O funcionalismo, tal como qualquer outra teoria, também tem de enfrentar alguns problemas. Mas como o meu propósito aqui é tratar do problema do espectro invertido, é sobre ele que vou pender.
            Uma objecção ao funcionalismo como teoria da mente é que a definição funcionalista não se limita a estados e processos mentais. Por exemplo, máquinas de tabaco, saca-rolhas, canetas e ratoeiras são, de um maneira ou de outra, conceitos funcionalmente definidos, mas nenhum deles é um conceito mental tal como dor, crença ou desejo. O que se caracteriza então por mental? E será possível englobar num modelo funcionalista?
            A visão tradicional na filosofia da mente afirma que os estados mentais distinguem-se por possuírem aquilo a que se chama, conteúdo qualitativo ou conteúdo intencional. Não é fácil dizer o que caracteriza o conteúdo qualitativo. De fato, segundo algumas teorias, não é possível sequer dizer o que ele é porque ele não pode ser conhecido por descrição, mas apenas através da experiência directa. Vamos supor que estamos a olhar para um quadro verde, e utilizamos depois uns óculos com lentes vermelhas. Alguma coisa relativa ao carácter da nossa experiência alterou-se quando colocamos os óculos, e é a este tipo de acontecimento que os filósofos chamam de conteúdo qualitativo.
            A razão pela qual o conteúdo qualitativo representa um problema para o funcionalismo é que, este está implicado com a definição dos estados mentais em termos das suas causas e efeitos. Parece possível, no entanto, que dois estados mentais tenham as mesmas relações causais, diferindo, porém, no seu conteúdo qualitativo. Está aqui novamente ilustrado o problema do espectro invertido de Locke. Aparentemente, é possível imaginar duas pessoas a observar coisas semelhantes em todos os aspectos psicológicos relevantes, com a única excepção da experiência subjectiva que possuem. Um observador teria conteúdo qualitativo do vermelho, o outro teria o conteúdo qualitativo do verde. O comportamento de ambos não revela a diferença, porque ambos designam a cor do objecto da mesma forma verbal. Além disso, a conexão causal entre as experiências (qualitativamente distintas) e os outros estados mentais também poderiam ser idênticas. Talvez ambos pensem num Guarda-chuva verde quando vêem o quadro verde, sintam-se deprimidos quando vêem a cor verde, e assim por diante. Parece que qualquer coisa que pudesse ser incluída na noção de papel causal das experiências poderia ser compartilhada por eles, e, apesar disso, o conteúdo qualitativo das experiências poderia ser totalmente diferente. Se isto for possível, então a abordagem funcionalista não funciona para os estados mentais que possuem conteúdo qualitativo. Se uma pessoa está a ter uma experiência do verde enquanto outra está a ter uma de vermelho, elas certamente devem estar em estados mentais diferentes.
            O exemplo do espectro invertido é mais do que um enigma verbal. A posse de conteúdo qualitativo é considerada como um dos principais factores para que um estado mental seja consciente.

Ricardo Carvalho

segunda-feira, 21 de março de 2011

Há dias em que o sol teima em não aparecer!


            Há dias em que o sol teima em não aparecer, mas porquê? Porquê, se o sol nos faz tão bem? Quem pode ser assim tão perverso ao ponto de nos privar daquilo que temos de mais importante?
            O dia nasce, a noite já ficou para trás, uma gota caída do céu desperta-nos, desatamos a correr. Para onde, para onde corremos nós? Não sabemos, não fazemos a mais pequena ideia, apenas uma vontade nos domina neste momento, a de continuar a correr, sem parar. A luz fascina-nos, deixa-nos magnetizados, e corremos ainda mais, com mais veemência até a alcançar. Observamos em redor outros como nós, também eles despertos pelas lágrimas caídas do céu, mas para onde correm? – para onde vamos? Perguntam com uma voz ofegante e trémula, própria de quem está perdido, mas que sabem que aquela corrida é a coisa mais importante que alguma vez vão ter de completar. O epílogo aproxima-se, já se deslumbra uma claridade, contudo, só um pode passar, só um vai atravessar o véu do desconhecido. E então apercebemo-nos que temos de ser nós, temos de correr mais ainda, fazer um último esforço. Já está, conseguimos, fomos nós.
            Num impulso sentimo-nos desabrochar, como uma flor na primavera. Cada pétala é como uma nova sensação, cada uma com o seu perfume. Todas juntas formam o ser e a beleza da flor. Mas onde está o sol? Ainda não o encontramos, sentimo-nos apavorados, e eis que surge uma nova pétala na nossa flor, a angústia, aquela que nos acompanhará durante toda a nossa existência, será a última a cair, deixando o tronco nu e que lentamente irá ressequir. Outro sentimento nos anda a perturbar, a inquietar o nosso ainda casto espírito, os outros! Aqueles que não conseguiram correr mais que nós – ó desgraçados que ficastes presos na noite.
            É altura de procurarmos o sol. O que vemos é o dia, disso não temos dúvidas, à noite não existem sombras, e nós agora vemos sombras, ofuscadas, com pouca vivacidade, quase se perdem da vista, mas são sombras. O dia está escuro, muito escuro, como num dia de inverno naquele momento em que o dia gentilmente convida a noite para entrar. Nestes dias sentimo-nos tristes, amargurados, as cores não sobrevêm, tudo parece apertado e sufoca-nos, o ar não corre – aonde estás sol? precisamos de ti. Começamos a perceber que ele não vem, não quer aparecer, temos de o procurar, temos desesperadamente de o encontrar. Olhamos para todos os lados, não o encontramos, nem um pequeno sinal dele, o desespero começa apodera-se da nossa vã mente. Estamos sozinhos, não conseguimos ver ninguém, apesar de estarmos rodeados por piolhos, há piolhos por todo lado. Os nossos olhos não se desviam daquele céu escuro, cáustico e penoso, palavras involuntárias começam a libertar-se da nossa boca – é isto? é assim? foi para isto que me atraíste? porquê? porque me chamas e agora te escondes? não serei eu por acaso digno de te receber? porque permitis-te que corre-se e atravessa-se o véu?
            O sol mantém-se insensível e indiferente ao nosso estado tresloucado, é como se para ele nada significássemos. Um pensamento ocorre-nos – vamos desistir. Sim, desistir, quem proíbe? tu, ó sol? tu, que nem sequer um raio te dignas mandar?
            E eis que num instante um vento fulgurante se levanta, sopra tão forte que é capaz de nos arrancar pela raiz, as pétalas quase se soltam, agarramo-nos o mais que podemos ao chão, clamamos o mais possível para que as nossas raízes sejam fortes o suficiente para não nos levar com o vento. A intempérie passou, conseguimos manter-nos firmes, algumas pétalas perderam-se, um riso apodera-se de nós, um sorriso sínico de felicidade e temor. O vento levou consigo as nuvens, aquelas nuvens escuras como o fundo dos mares. Estremecemos, um arrepio percorre todo o corpo, abrimos os olhos o mais que podemos, o corpo fica petrificado, hirto como uma estátua. Toda aquela luz nos deslumbra, as sombras tornam-se nítidas, vemos todos os seus contornos de uma forma perfeita. As cores! Sim, já conseguimos ver as cores, sentimo-nos felizes.
Não era isto que esperávamos, pois ambicionávamos algo mais intenso, mais penetrante, que aquece-se a alma fria. Mas para quê pedir mais se ainda a pouco nada tínhamos?
            O vento foi capaz de levar consigo aquelas nuvens pesadas, que forte que ele é, e no lugar destas deixou umas nuvens brancas como o algodão, leves como uma pena e finas como uma folha de azevinho. Já recompostos, mas contudo ainda débeis caminhamos, já não há mais nada para procurar, caminhamos sempre sem parar, e aquela névoa não se vai embora, e estamos cansados, e num devaneio perguntamos à nossa voz interior – é isto? afinal é isto? para quê? para ser assim? – e continuamos a caminhar, ficamos cada vez mais exaustos, as pétalas começam a ganhar um peso insuportável, sentimos que o nosso pequeno tronco já não suportará muito mais tempo as pétalas, e parámos, olhamos à nossa volta e só vemos outros como nós, piolhos moribundos. Pensamos em desistir, sim, acabar com tudo, por fim aquela angústia que nos amordaça o coração – não, outra vez aquela angústia, aquela minha velha amiga, afinal estiveste sempre aí!
            De súbito um raio de sol atinge-nos mesmo no peito, uma aura penetra no nosso peito, um calor tão forte que é capaz de nos queimar, uma felicidade extenuante apodera-se de nós, lança-nos para o centro do universo. Um raio saído daquele céu sem-fim furou a placenta da terra e alojou-se no peito, bem junto ao coração. Então percebemos que nunca antes havíamos contemplado nada verdadeiramente, que andávamos às apalpadelas, iludidos, enganados – como podemos ser tão cegos? – Agora queremos mais, não ficamos satisfeitos apenas com um raio, o decurso é irreversível, temos de arranjar forma de fazer desaparecer aquela névoa, queremos contemplar o sol completo. Abrimos os braços para o céu e com o peito desnudado pedimos intensamente que o vento volte e leve aquela cortina de seda para longe e deixe entrar em nós aquele resplendor.
            E eis que novamente ele aparece, o vento, e uma dúvida de forma inesperada nos atormenta o espírito, será que ele apareceu porque pedimos, ou será que apareceu porque tinha que aparecer? Que importa? Isso agora não tem qualquer importância, ele apareceu e só desejamos que leve o mais depressa possível.
            E lá está ele, o nosso sol, ficamos estáticos, de braços abertos, sem conseguir dizer uma palavra, sem sequer conseguir organizar os pensamentos. Aquela luz entrou em nós como algo divino, como um salvamento, aquecendo-nos a alma. Já não existem sombras, tudo se torna nítido, tudo é tão real, as cores são as do arco-íris, tão intensas e penetrantes. Tudo é belo, a felicidade extravasa os limites do nosso corpo, nada mais tem importância, apenas olhamos o nosso sol, só ele é agora capaz de nos manter vivos. A angústia, essa parece que foi com o vento, só conseguimos ter sentimentos aprazíveis. Tudo faz agora sentido, aquela corrida… Desabrochamos completamente, mais pétalas nasceram, sentimo-nos mais fortes que tudo, o nosso pequeno tronco é agora capaz de suportar todas as pétalas do mundo.
            Apenas um pequeno pensamento alojado nos ínfimos subúrbios da nossa mente nos perturba, mas é de tal forma pertinente que é capaz de abalar todo o espírito. O pensamento de saber se vamos estar muito tempo debaixo do sol, se ele se vai disponibilizar para nos iluminar e aquecer para todo o sempre. Sabemos que isso não depende de nós, por nós a questão nem é questão, por isso, com os braços bem abertos gritamos bem alto – Sol por favor, não te vás embora, fica comigo.

            Ricardo Carvalho  

A origem animal da moral?

Para conseguirmos chegar às origens animais da moral, torna-se necessário em primeiro lugar perceber de que assunto se está a tratar. Afinal em que consiste a moralidade? Será apenas um termo humano cujo assunto a que corresponde apenas diz respeito à espécie humana? Ou é um termo humano cujo assunto pode dizer respeito a todas as espécies? Que é um termo humano, disso penso não existirem quaisquer dúvidas, assim sendo, qualquer tentativa de encontrar a sua origem nos restantes animais, é sempre uma tentativa antropomórfica, todos os predicados que possamos atribuir à moralidade, são predicados humanos. Isto é, vamos sempre tentar encontrar algo que os humanos estabeleceram para nós próprios através de acordos mais ou menos tácitos, que dizem respeito à nossa conduta e comportamento.
A ética deve ser entendida como um fenómeno humano, como o resultado de necessidades, interesses e desejos humanos. Pactuo com T. Hobbes a ideia de que o homem é profundamente anti-social, a constituição psicológica do homem é na generalidade semelhante a todos. Os seres humanos colocados no estado de natureza são guiados pelas paixões, e sendo racionais, põem a razão ao serviço dessas paixões, procuram fazer aquilo que lhes apetece, predomina uma inimizade entre os homens. As motivações do homem para passar do Estado de natureza para o Estado civil – onde nasce a ética – foram o medo da morte e a necessidade de preservar a sua subsistência, o desejo de ter uma vida melhor e uma vida mais segura. Daqui resulta que a motivação do homem não se prende com o interesse dos outros, mas antes com o seu próprio interesse, o que faz da espécie humana, em termos éticos, egoísta. A única motivação possível face à natureza dos homens é maximizar o seu próprio prazer. A ética surge quando as pessoas compreendem o que têm de fazer para viver melhor, para garantir a sua sobrevivência. Firmam entre si um acordo mútuo que se estabelece com base em regras, leis, normas, valores e motivações que governam o agir e a conduta humana. Em sociedade o homem vive muito melhor que sozinho, porque existe cooperação mútua garantida pelo acordo, que determina que cada um obedece às regras na condição de os outros também o fazerem, e é este aspecto que permitiu a criação da cultura, das escolas, da electricidade, etc., é este contrato social o fundamento da eticidade. A teoria do contrato social hobbesiana não prevê o altruísmo, cada pessoa está determinada a fazer parte do acordo e a respeitar as regras por simples interesse pessoal. Mesmo os actos que nos parecem mais altruístas têm por base uma motivação pessoal. Isto acontece porque somos animais racionais, e não somente animais guiados por instintos.
Mas se a ética apenas diz respeito a animais racionais, porque nasce de um acordo estabelecido por estes e o altruísmo parece não passar de uma ilusão, então como se justifica o comportamento altruísta puro verificado quer em certos homens quer sobretudo em diversos animais de várias espécies? Os animais não têm capacidade de firmar acordos, que contemplem regras, valores, normas ou leis, então como podemos justificar determinados comportamentos relatados no quotidiano de formas altruístas nos homens e nos animais, sem que daí se consiga retirar qual o proveito que cada um tira desse comportamento, como é exemplo o caso relatado do famoso chimpanzé Washoe que salva um outro que tinha caído a um fosso apesar de não ter tido qualquer relacionamento com ele anteriormente, ou os vários outros exemplos presentes no livro, Quando os Elefantes Choram, de Jeffrey Masson e Susan Macarthy? Uma resposta que considero ser a mais correcta é apresentada em A Vida Emocional dos Animais, de Marc Bekoff, que faz a distinção entre moral e ética, definindo a ética como aquilo que permite distinguir o que é uma acção correcta ou não, enquanto a moral diz mais respeito aos costumes, ao comportamento de um indivíduo numa sociedade, «pode pensar-se na moralidade como um comportamento destinado a promover (ou pelo menos a não diminuir) o bem dos outros. A moralidade é essencialmente um fenómeno social.» (Bekoff, 2008: 124). Esta distinção é de suma importância, porque coloca a ética no domínio distintamente humano, enquanto a moral pode ser expandida a todos os animais que apresentem algum tipo de comportamento social, que vivam em comunidade. Como Bekoff salienta, o comportamento social inclui a cooperação, reciprocidade, empatia, ajuda, etc. Podemos ver todos estes comportamentos em vários animais das mais variadas espécies, Konrad Lorenz escreveu um ensaio em que relata pormenorizadamente o comportamento animal e humano, e demonstra que os factores que determinam um comportamento social nos animais e nos humanos são inatos (cf. Lorenz, 1975: 123-133). O próprio Bekoff apresenta vários exemplos de cooperação e ajuda entre as diferentes espécies. Isto não contraria aqueles que defendem que os humanos são superiores aos animais, nem os desmentem, simplesmente não coloca os animais no mesmo nível evolutivo que os seres humanos, porque os seres humanos têm ética e os animais apenas podem apresentar códigos morais de comportamento. E mesmo a moralidade não é igual em todos os animais, há graus de moralidade, e o homem situa-se claramente no topo da pirâmide moral. Isto não faz do homem um ser superior, mas antes um ser mais evoluído, foi esse grau de evolução superior que permitiu ao homem passar da moral à ética. Já Darwin afirmava no livro A Origem do Homem, que qualquer animal que se desenvolva como um homem, poderia ficar habilitado das capacidades humanas, logo, da capacidade moral, sustentava uma continuidade entre os sentimentos sociais dos animais e a moralidade humana. Nesta linha segue também Frans de Waal, que diz que assim como as características físicas do corpo são resultado do processo evolutivo, também a moralidade o é, a moralidade humana conserva e possui uma moralidade com outros animais (é como a figura da matrioska, em que uma figura pressupõe outra), existe uma ligação ontológica entre as camadas superiores no homem com as camadas interiores presentes no homem mas também nos animais.    
Então onde está a origem da moralidade nos homens? E nos animais? E o que permitiu os seres humanos evoluírem de seres morais, para seres morais com ética? Uma possível resposta encontra-se na ciência, mais propriamente na neurociência, que nos prova de certa forma que os animais também podem ser seres morais. O factor determinante da passagem do ser humano moral para um ser moral ético, foi o facto de a consciência conseguir libertar-se do vínculo dos instintos, para gerar novas soluções para os problemas. A neurociência tem desenvolvido vários estudos no sentido de se “conhecerem” os neurónios da moralidade, e reconheceu com mais ou menos consenso que estes se encontram nos lobos pré-frontais do córtex cerebral, é ele que fornece o fundamento psicológico daquilo que se considera ser a mente humana, é onde se encontra a dimensão espiritual da espécie humana. As áreas pré-frontais do córtex dos humanos são muito mais desenvolvidas que a de todos os outros animais, o que possibilita a capacidade de o intelecto distinguir entre as diferentes situações e condições, fazer escolhas, seguir determinados valores e objectivos, antecipar nas nossas mentes as situações possíveis ou prováveis e o efeito das nossas acções, distinguir o que é certo do que é errado, ou seja, estabelecer os princípios morais que orientam os nossos comportamentos (cf. Frankl, 2003: 129). António Damásio, nas suas investigações das funções dos lobos pré-frontais descritas no livro O Sentimento de Si, estabeleceu os lobos pré-frontais como o centro da moral do cérebro. Investigou vários casos de pacientes que sofreram graves danos nos lobos pré-frontais, que tinha como consequência a incapacidade de manterem relações sociais, preocupações com os outros ou qualquer sentido de responsabilidade. Contudo, há indivíduos cujos lobos frontais não sofreram qualquer dano, e mesmo assim apresentam um comportamento anti-social e imoral, porque têm a capacidade de neutralizar ou inibir a função dos neurónios morais, isto é possível porque os seres humanos são seres racionais, nos animais isso não acontece, por este motivo talvez os animais sejam mais morais que os humanos, ou pelo menos mais “puros”.
            Os fundamentos neurológicos da nossa consciência permitiram que o homem se desvinculasse dos instintos, para gerar novas soluções para os problemas. Este facto fez com que o prosencéfalo se desenvolvesse de uma forma extraordinária nos humanos, o que não aconteceu com as restantes espécies, e que dotou a nossa espécie de uma enorme vantagem sobre todas as outras. O que levou o homem a desenvolver extraordinariamente esta zona cerebral foi o facto de previamente já possuir consciência, daí nos animais o seu desenvolvimento não ser tão significativo. Os nossos antepassados hominídeos tiveram uma área do cérebro que foi capaz de transformar os seus reflexos instintivos em hábitos, com vista a superar as novas condições para as quais os instintos não os haviam preparado.
Mutatis mutandis, é o que de certa forma também defende Yves Christen, que salienta precisamente este facto, que os humanos não têm o monopólio das estruturas neuronais, a hormona oxitocina – que pode estar ligada a diversos comportamentos tais como, reconhecimento social, vinculação, confiança e comportamento materno – está presente em todos os mamíferos, e pode estar na base da moralidade. Desta forma, o homem distingue-se das restantes espécies animais apenas por um grau de desenvolvimento superior, e não por género. O homem distingue-se dos restantes animais por ser um fabricante de utensílios, por ser um ser ético e moral, isto é, por ter evoluído de hominídeo para homo sapiens. Contudo, é possível notar que quanto mais próximos de nós são os animais em termos evolutivos, mais coisas partilham em comum com os humanos, como o altruísmo, a cooperação, o sentido de ajuda, e alguns até já são capazes de fazer uso de utensílios, como demonstrou Lestel, no seu livro As Origens Animais da Cultura, e também no estudo realizado por Vauclair, no livro A Inteligência dos Animais, onde demonstra a capacidade do emprego de utensílios por certos animais, relata alguns casos desse emprego, e consegue explicar behavioristicamente e através de estudos imagiológicos a existência de uma cognição social nos animais não humanos (cf. Vauclair, 1992: 37-49). Isto leva-nos à conclusão a que chegou Bekoff, e que cada vez está mais presente em todos os seres humanos, de que não existem diferenças assim tão significativas entre os animais e os humanos, essas diferenças são mínimas, e é muito mais o que partilhamos com eles que aquilo que nos distingue. 
Retomando a questão de Hobbes, talvez os animais sejam mais morais que os humanos, os homens são muitas vezes bestiais nas suas inclinações e capazes de vícios com os quais os animais jamais sonharam. A capacidade da razão e do livre-arbítrio possibilitam o homem descer a profundezas morais infinitamente maiores do que poderiam os seres brutos, o instinto animal é muito menos falível que a razão humana. Os animais não se embebedam, não são mentirosos nem são sádicos. John Locke no Ensaio Acerca do Entendimento Humano tinha esta frase «a mente activa do homem, podia conduzi-lo a uma brutalidade abaixo do nível dos bichos, quando ele renuncia à razão». 

Ricardo Carvalho