sábado, 26 de março de 2011

Abordagem simples sobre o Espectro Invertido

          
Espectro Invertido em Locke

            Locke vai analisar se as ideias, sendo simples imagens ou percepções das nossas mentes, podem ser em si verdadeiras ou falsas. Ele parte da verdade ou falsidade das nossas ideias, para perceber a existência real das coisas. Locke vai classificar as ideias simples como; “percepções que Deus nos permitiu receber ao atribuir poder aos objectos exteriores para que as produzam em nós, através de leis e formas estabelecidas adequadas à sua sabedoria e vontade, embora sejam incompreensíveis para nós, a sua verdade apenas reside nas imagens que causam em nós, e têm de ser adequadas a esses poderes que ele colocou nos objectos exteriores, ou então não poderiam ser causadas em nós”. É desta forma, que Locke concebe o modo como distinguimos os objectos, através da sabedoria de Deus, que determinou marcas para distinguir as coisas, e podermos fazer escolhas. E esta distinção não altera a natureza da nossa ideia simples, não altera o facto de, pensarmos se o azul está na própria violeta ou na nossa mente ao visualizarmos uma violeta. O azul, quer seja essa cor real ou apenas uma textura peculiar que causa em nós essa ideia, serve apenas como marca de distinção entre os objectos.
            É nesta sequência que surge o problema do espectro invertido, sobre o qual incide este ensaio. No Livro II, Cap. XXXII, § 15, Locke continua a sua reflexão sobre as ideias verdadeiras ou falsas, e afirma que;
…se através da diferente estrutura dos nossos órgãos estivesse ordenado que o mesmo objecto devesse produzir ideias diferentes nas mentes de diferentes homens em simultâneo, por exemplo, se a ideia que uma violeta produziu na mente de um homem, através dos seus olhos, fosse a mesma que um malmequer produziu num outro homem e vice-versa...
isso não reflecte nenhuma falsidade em nenhuma das ideias. Isto acontece porque não é possível conhecer a mente de terceiros, não se podem entender as imagens que foram produzidas pelos órgãos na mente de outra pessoa. Todos os objectos que contenham a textura de uma violeta ou um malmequer, causam constantemente as ideias a que chamamos azul e amarelo respectivamente, e independentemente das imagens que estejam na nossa mente, somos capazes de distinguir frequentemente as coisas através do uso dessas imagens. Essas distinções são classificadas através do termo azul e amarelo, de modo que as ideias produzidas pelas flores na nossa mente pareçam as mesmas que são produzidas na mente de outras pessoas. É este o problema do espectro invertido. Se a experiência subjectiva de um indivíduo ao percepcionar uma cor for igual à experiência de um outro indivíduo quando este percepciona outra cor, não há forma de se verificar na realidade se o que um percepciona é o mesmo que o outro percepciona.
            No fundo, o que Locke sugere com o espectro invertido é que, os órgãos sensoriais de uma pessoa podem ser diferentes das de outra, de tal forma que, em determinadas circunstâncias, onde uma percepciona a cor azul onda percepciona amarelo. Este problema lançou as bases para uma profunda e difícil discussão no seio da filosofia da mente, acerca da existência autónoma de aspectos subjectivos da mente humana.

Outras Mentes

            A partir de um ponto do vista do senso comum, quando olhamos para outras pessoas julgamos que elas pensam da mesma forma que nós, que têm os mesmos sentimentos e percepções. Mas será que eu sei realmente o que se passa na mente de outra pessoa? Ou será que só tenho um conhecimento aproximado ou indirecto do que se passa numa mente que não a minha, fazendo uma inferência a partir do que são os meus estados mentais e aquilo que as essas pessoas me transmitem? O meu acesso é apenas a um corpo e a um comportamento, inclusivamente verbal, o qual é especialmente importante em todo o processo. Posso ter acesso ao interior físico do corpo de outro, abri-lo de várias formas, mas nunca à sua interioridade mental, supostamente idêntica à minha. Mesmo numa operação cerebral não se encontram “seres mentais” no seu interior, tais como pensamentos e sentimentos, os quais, no entanto admito que possua, pelo menos se lido com essa com pessoa. Entidades deste tipo só se encontram em mim, pelo meu acesso directo à minha mente.           As razões que conduzem ao cepticismo acerca das outras mentes são importantes para a filosofia da mente em geral.  
Os filósofos atribuíram o termo qualia para designar as qualidades da experiência subjectiva, as qualidades fenoménicas tal como são experienciadas, ao facto de a vida mental ser sentida. Só existem qualia em primeira pessoa. É aqui que entra o problema do espectro invertido de Locke. Por exemplo, duas pessoas podem ter o mesmo vocabulário para as cores e discriminar cores da mesma maneira, ou seja, elas chamarão vermelhas e verdes às mesmas coisas nas mesmas ocasiões, e no entanto uma delas pode ter visto cores invertidas, por exemplo vermelho por verde e verde por vermelho. Nesse caso, nunca se saberia. De outra forma, se uma pessoa tivesse um comportamento absolutamente indistinguível do de todas as outras pessoas, ela poderia ser totalmente desprovida de qualia sem que isso alguma vez se descobrisse. Se o primeiro caso é associado ao espectro invertido, o segundo é conhecido na filosofia da mente como o problema do zombie.

Teorias Materialistas da Mente

            Um ser humano é composto por átomos, organizados de forma complexa, que obedece às leis da física e da biologia. O materialismo é uma teoria da mente que afirma que isto é tudo o que somos. Segundo este materialismo o nosso corpo não está ligado a nenhuma parte espiritual não física. Uma teoria materialista da mente tem como propósito tentar explicar os factos mentais em termos que sejam estritamente físicos. Desta forma uma teoria materialista pode-se desenvolver de duas formas; pode recair sobre aquilo que observamos nas outras pessoas a partir de um ponto de vista do exterior, ou seja, analisando o seu discurso e comportamento. Ou pode fazer o inverso, recair sobre aquilo que ocorre no interior de cada pessoa, ou seja no interior do seu cérebro. A primeira teoria materialista considerada, designa-se por Behaviorismo, à segunda Funcionalismo.

Behaviorismo

            O behaviorismo defende que é possível explicar a natureza dos pensamentos e das emoções unicamente em termos do comportamento. Para os behavioristas os factos mentais são somente factos sobre o discurso e comportamento. Para o senso comum um determinado comportamento poderia ter a sua explicação baseada em acontecimentos mentais internos de alguma espécie, como por exemplo, a fúria, fome, a alegria, etc., contudo para um behaviorista estas explicações «mentalistas» não têm lugar numa visão científica do comportamento humano. A ciência deve trabalhar com aquilo que é publicamente observável. O behaviorismo foi defendido quer na filosofia quer na psicologia. O filósofo que mais destaque teve na abordagem a esta teoria foi Gilbert Ryle (1900-1976). Segundo ele os estados mentais privados não existem. O behaviorismo de Ryle ficou conhecido como Behaviorismo Analítico. Ryle sustentou que, aquilo a que chamamos estados mentais, não passa de comportamentos.
            Os behavioristas defenderam que uma pessoa através do comportamento de outra pode, a partir do exterior, perceber se uma pessoa esta zangada, alegre, com receio ou até mesmo apaixonada com tanta ou mais facilidade que ela própria. Esta ideia pode parecer atractiva, uma vez que muitas das vezes não somos a melhor autoridade para analisar os nossos estados mentais, muitas vezes estamos tristes ou deprimidos e pensamos que não estamos, basta pensar que quando temos uma depressão, a maior parte das vezes, só a reconhecemos depois de irmos a um médico que nos informa desse estado. Além disso, aquilo que por vezes queremos torna-se mais obvio para os outros que para nós mesmos. Assim, os nossos estados mentais parecem que são, de facto, publicamente observáveis, logo não são internos.     
            O behaviorismo era atraente devido à sua postura científica, mas acabou por perder influencia com o passar do tempo. Este insucesso deveu-se a diversos factores que colocaram em causa a teoria, e que tornaram-se em objecções insustentáveis. Foi inclusivamente rejeitada quer pelos filósofos, que não conseguiram lidar com as objecções, quer pelos psicólogos, que substituíram a teoria por projectos cognitivistas.
            Uma das objecções mais proeminentes ao behaviorismo foi precisamente o problema do espectro invertido. Segundo o que já foi dito em cima acerca do problema do espectro invertido, é possível que duas pessoas tenham exactamente o mesmo comportamento e, apesar de tudo, tenham estados mentais diferentes. O comportamento de determinada pessoa, incluindo o verbal, seria indistinguível, por exemplo, quando duas pessoas vissem um objecto com uma determinada cor, vamos supor vermelho, ambas ao serem questionadas acerca da cor, responderiam que estão a ver “vermelho”, e isto aconteceria porque ambas aprenderam a designar essa determinada cor pelo termo “vermelho”, apesar de não estarem a perspectivar a mesma cor.
            Desta forma, o problema do espectro invertido parece mostrar que, apesar do comportamento das duas pessoas ser idêntico, as experiências visuais diferem. Assim, torna-se plausível que não se considere a mente como comportamento.

Funcionalismo  

            Com o fracasso do behaviorismo, muitos filósofos tiveram necessidade de abordar a questão da mente de uma forma diferente. Era necessária uma nova teoria, que pode-se explicar os fenómenos mentais. Assim, desta forma surge uma nova teoria da mente materialista, designada por funcionalismo.
            O funcionalismo é uma teoria relativamente recente, e neste momento é a teoria mais seguida pelos filósofos da mente. A teoria concentra-se no papel funcional dos estados mentais, ou seja, a teoria concentra-se nos dados de entrada e saída e na relação entre os estados internos. Um funcionalista define qualquer estado mental em termos das suas relações típicas com outros estados mentais e dos seus efeitos no comportamento. Assim, um pensamento que ocorra define-se em termos das suas relações com outros pensamentos e com o comportamento. Desta forma, pode-se verificar que o funcionalismo aproveitou algumas características do behaviorismo, como – a de que a actividade mental está em geral intimamente ligada a disposições comportamentais – ao mesmo tempo que admite que os acontecimentos mentais podem efectivamente causar comportamentos.
            O funcionalismo pode ser compreendido com recurso à comparação entre a relação de um computador e o seu programa. Ao falarmos de um computador, temos de falar do seu suporte físico (hardware), e do seu suporte lógico (software). O suporte físico de um computador é aquilo de que ele é feito, monitor, teclado, fios, circuitos, etc. O suporte lógico é o programa, o sistema de operações que o suporte físico executa. O suporte lógico pode ser adaptado para servir em vários sistemas diferentes. O suporte lógico, por norma, é um complicado sistema de instruções dadas ao suporte físico, que pode ser executado de várias formas, atingindo sempre o mesmo resultado.
            Desta forma, o funcionalismo, enquanto teoria da mente, trata do suporte lógico do pensamento e não do suporte físico. O funcionalismo, tal como qualquer outra teoria, também tem de enfrentar alguns problemas. Mas como o meu propósito aqui é tratar do problema do espectro invertido, é sobre ele que vou pender.
            Uma objecção ao funcionalismo como teoria da mente é que a definição funcionalista não se limita a estados e processos mentais. Por exemplo, máquinas de tabaco, saca-rolhas, canetas e ratoeiras são, de um maneira ou de outra, conceitos funcionalmente definidos, mas nenhum deles é um conceito mental tal como dor, crença ou desejo. O que se caracteriza então por mental? E será possível englobar num modelo funcionalista?
            A visão tradicional na filosofia da mente afirma que os estados mentais distinguem-se por possuírem aquilo a que se chama, conteúdo qualitativo ou conteúdo intencional. Não é fácil dizer o que caracteriza o conteúdo qualitativo. De fato, segundo algumas teorias, não é possível sequer dizer o que ele é porque ele não pode ser conhecido por descrição, mas apenas através da experiência directa. Vamos supor que estamos a olhar para um quadro verde, e utilizamos depois uns óculos com lentes vermelhas. Alguma coisa relativa ao carácter da nossa experiência alterou-se quando colocamos os óculos, e é a este tipo de acontecimento que os filósofos chamam de conteúdo qualitativo.
            A razão pela qual o conteúdo qualitativo representa um problema para o funcionalismo é que, este está implicado com a definição dos estados mentais em termos das suas causas e efeitos. Parece possível, no entanto, que dois estados mentais tenham as mesmas relações causais, diferindo, porém, no seu conteúdo qualitativo. Está aqui novamente ilustrado o problema do espectro invertido de Locke. Aparentemente, é possível imaginar duas pessoas a observar coisas semelhantes em todos os aspectos psicológicos relevantes, com a única excepção da experiência subjectiva que possuem. Um observador teria conteúdo qualitativo do vermelho, o outro teria o conteúdo qualitativo do verde. O comportamento de ambos não revela a diferença, porque ambos designam a cor do objecto da mesma forma verbal. Além disso, a conexão causal entre as experiências (qualitativamente distintas) e os outros estados mentais também poderiam ser idênticas. Talvez ambos pensem num Guarda-chuva verde quando vêem o quadro verde, sintam-se deprimidos quando vêem a cor verde, e assim por diante. Parece que qualquer coisa que pudesse ser incluída na noção de papel causal das experiências poderia ser compartilhada por eles, e, apesar disso, o conteúdo qualitativo das experiências poderia ser totalmente diferente. Se isto for possível, então a abordagem funcionalista não funciona para os estados mentais que possuem conteúdo qualitativo. Se uma pessoa está a ter uma experiência do verde enquanto outra está a ter uma de vermelho, elas certamente devem estar em estados mentais diferentes.
            O exemplo do espectro invertido é mais do que um enigma verbal. A posse de conteúdo qualitativo é considerada como um dos principais factores para que um estado mental seja consciente.

Ricardo Carvalho

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