segunda-feira, 21 de março de 2011

Há dias em que o sol teima em não aparecer!


            Há dias em que o sol teima em não aparecer, mas porquê? Porquê, se o sol nos faz tão bem? Quem pode ser assim tão perverso ao ponto de nos privar daquilo que temos de mais importante?
            O dia nasce, a noite já ficou para trás, uma gota caída do céu desperta-nos, desatamos a correr. Para onde, para onde corremos nós? Não sabemos, não fazemos a mais pequena ideia, apenas uma vontade nos domina neste momento, a de continuar a correr, sem parar. A luz fascina-nos, deixa-nos magnetizados, e corremos ainda mais, com mais veemência até a alcançar. Observamos em redor outros como nós, também eles despertos pelas lágrimas caídas do céu, mas para onde correm? – para onde vamos? Perguntam com uma voz ofegante e trémula, própria de quem está perdido, mas que sabem que aquela corrida é a coisa mais importante que alguma vez vão ter de completar. O epílogo aproxima-se, já se deslumbra uma claridade, contudo, só um pode passar, só um vai atravessar o véu do desconhecido. E então apercebemo-nos que temos de ser nós, temos de correr mais ainda, fazer um último esforço. Já está, conseguimos, fomos nós.
            Num impulso sentimo-nos desabrochar, como uma flor na primavera. Cada pétala é como uma nova sensação, cada uma com o seu perfume. Todas juntas formam o ser e a beleza da flor. Mas onde está o sol? Ainda não o encontramos, sentimo-nos apavorados, e eis que surge uma nova pétala na nossa flor, a angústia, aquela que nos acompanhará durante toda a nossa existência, será a última a cair, deixando o tronco nu e que lentamente irá ressequir. Outro sentimento nos anda a perturbar, a inquietar o nosso ainda casto espírito, os outros! Aqueles que não conseguiram correr mais que nós – ó desgraçados que ficastes presos na noite.
            É altura de procurarmos o sol. O que vemos é o dia, disso não temos dúvidas, à noite não existem sombras, e nós agora vemos sombras, ofuscadas, com pouca vivacidade, quase se perdem da vista, mas são sombras. O dia está escuro, muito escuro, como num dia de inverno naquele momento em que o dia gentilmente convida a noite para entrar. Nestes dias sentimo-nos tristes, amargurados, as cores não sobrevêm, tudo parece apertado e sufoca-nos, o ar não corre – aonde estás sol? precisamos de ti. Começamos a perceber que ele não vem, não quer aparecer, temos de o procurar, temos desesperadamente de o encontrar. Olhamos para todos os lados, não o encontramos, nem um pequeno sinal dele, o desespero começa apodera-se da nossa vã mente. Estamos sozinhos, não conseguimos ver ninguém, apesar de estarmos rodeados por piolhos, há piolhos por todo lado. Os nossos olhos não se desviam daquele céu escuro, cáustico e penoso, palavras involuntárias começam a libertar-se da nossa boca – é isto? é assim? foi para isto que me atraíste? porquê? porque me chamas e agora te escondes? não serei eu por acaso digno de te receber? porque permitis-te que corre-se e atravessa-se o véu?
            O sol mantém-se insensível e indiferente ao nosso estado tresloucado, é como se para ele nada significássemos. Um pensamento ocorre-nos – vamos desistir. Sim, desistir, quem proíbe? tu, ó sol? tu, que nem sequer um raio te dignas mandar?
            E eis que num instante um vento fulgurante se levanta, sopra tão forte que é capaz de nos arrancar pela raiz, as pétalas quase se soltam, agarramo-nos o mais que podemos ao chão, clamamos o mais possível para que as nossas raízes sejam fortes o suficiente para não nos levar com o vento. A intempérie passou, conseguimos manter-nos firmes, algumas pétalas perderam-se, um riso apodera-se de nós, um sorriso sínico de felicidade e temor. O vento levou consigo as nuvens, aquelas nuvens escuras como o fundo dos mares. Estremecemos, um arrepio percorre todo o corpo, abrimos os olhos o mais que podemos, o corpo fica petrificado, hirto como uma estátua. Toda aquela luz nos deslumbra, as sombras tornam-se nítidas, vemos todos os seus contornos de uma forma perfeita. As cores! Sim, já conseguimos ver as cores, sentimo-nos felizes.
Não era isto que esperávamos, pois ambicionávamos algo mais intenso, mais penetrante, que aquece-se a alma fria. Mas para quê pedir mais se ainda a pouco nada tínhamos?
            O vento foi capaz de levar consigo aquelas nuvens pesadas, que forte que ele é, e no lugar destas deixou umas nuvens brancas como o algodão, leves como uma pena e finas como uma folha de azevinho. Já recompostos, mas contudo ainda débeis caminhamos, já não há mais nada para procurar, caminhamos sempre sem parar, e aquela névoa não se vai embora, e estamos cansados, e num devaneio perguntamos à nossa voz interior – é isto? afinal é isto? para quê? para ser assim? – e continuamos a caminhar, ficamos cada vez mais exaustos, as pétalas começam a ganhar um peso insuportável, sentimos que o nosso pequeno tronco já não suportará muito mais tempo as pétalas, e parámos, olhamos à nossa volta e só vemos outros como nós, piolhos moribundos. Pensamos em desistir, sim, acabar com tudo, por fim aquela angústia que nos amordaça o coração – não, outra vez aquela angústia, aquela minha velha amiga, afinal estiveste sempre aí!
            De súbito um raio de sol atinge-nos mesmo no peito, uma aura penetra no nosso peito, um calor tão forte que é capaz de nos queimar, uma felicidade extenuante apodera-se de nós, lança-nos para o centro do universo. Um raio saído daquele céu sem-fim furou a placenta da terra e alojou-se no peito, bem junto ao coração. Então percebemos que nunca antes havíamos contemplado nada verdadeiramente, que andávamos às apalpadelas, iludidos, enganados – como podemos ser tão cegos? – Agora queremos mais, não ficamos satisfeitos apenas com um raio, o decurso é irreversível, temos de arranjar forma de fazer desaparecer aquela névoa, queremos contemplar o sol completo. Abrimos os braços para o céu e com o peito desnudado pedimos intensamente que o vento volte e leve aquela cortina de seda para longe e deixe entrar em nós aquele resplendor.
            E eis que novamente ele aparece, o vento, e uma dúvida de forma inesperada nos atormenta o espírito, será que ele apareceu porque pedimos, ou será que apareceu porque tinha que aparecer? Que importa? Isso agora não tem qualquer importância, ele apareceu e só desejamos que leve o mais depressa possível.
            E lá está ele, o nosso sol, ficamos estáticos, de braços abertos, sem conseguir dizer uma palavra, sem sequer conseguir organizar os pensamentos. Aquela luz entrou em nós como algo divino, como um salvamento, aquecendo-nos a alma. Já não existem sombras, tudo se torna nítido, tudo é tão real, as cores são as do arco-íris, tão intensas e penetrantes. Tudo é belo, a felicidade extravasa os limites do nosso corpo, nada mais tem importância, apenas olhamos o nosso sol, só ele é agora capaz de nos manter vivos. A angústia, essa parece que foi com o vento, só conseguimos ter sentimentos aprazíveis. Tudo faz agora sentido, aquela corrida… Desabrochamos completamente, mais pétalas nasceram, sentimo-nos mais fortes que tudo, o nosso pequeno tronco é agora capaz de suportar todas as pétalas do mundo.
            Apenas um pequeno pensamento alojado nos ínfimos subúrbios da nossa mente nos perturba, mas é de tal forma pertinente que é capaz de abalar todo o espírito. O pensamento de saber se vamos estar muito tempo debaixo do sol, se ele se vai disponibilizar para nos iluminar e aquecer para todo o sempre. Sabemos que isso não depende de nós, por nós a questão nem é questão, por isso, com os braços bem abertos gritamos bem alto – Sol por favor, não te vás embora, fica comigo.

            Ricardo Carvalho  

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