segunda-feira, 21 de março de 2011

A origem animal da moral?

Para conseguirmos chegar às origens animais da moral, torna-se necessário em primeiro lugar perceber de que assunto se está a tratar. Afinal em que consiste a moralidade? Será apenas um termo humano cujo assunto a que corresponde apenas diz respeito à espécie humana? Ou é um termo humano cujo assunto pode dizer respeito a todas as espécies? Que é um termo humano, disso penso não existirem quaisquer dúvidas, assim sendo, qualquer tentativa de encontrar a sua origem nos restantes animais, é sempre uma tentativa antropomórfica, todos os predicados que possamos atribuir à moralidade, são predicados humanos. Isto é, vamos sempre tentar encontrar algo que os humanos estabeleceram para nós próprios através de acordos mais ou menos tácitos, que dizem respeito à nossa conduta e comportamento.
A ética deve ser entendida como um fenómeno humano, como o resultado de necessidades, interesses e desejos humanos. Pactuo com T. Hobbes a ideia de que o homem é profundamente anti-social, a constituição psicológica do homem é na generalidade semelhante a todos. Os seres humanos colocados no estado de natureza são guiados pelas paixões, e sendo racionais, põem a razão ao serviço dessas paixões, procuram fazer aquilo que lhes apetece, predomina uma inimizade entre os homens. As motivações do homem para passar do Estado de natureza para o Estado civil – onde nasce a ética – foram o medo da morte e a necessidade de preservar a sua subsistência, o desejo de ter uma vida melhor e uma vida mais segura. Daqui resulta que a motivação do homem não se prende com o interesse dos outros, mas antes com o seu próprio interesse, o que faz da espécie humana, em termos éticos, egoísta. A única motivação possível face à natureza dos homens é maximizar o seu próprio prazer. A ética surge quando as pessoas compreendem o que têm de fazer para viver melhor, para garantir a sua sobrevivência. Firmam entre si um acordo mútuo que se estabelece com base em regras, leis, normas, valores e motivações que governam o agir e a conduta humana. Em sociedade o homem vive muito melhor que sozinho, porque existe cooperação mútua garantida pelo acordo, que determina que cada um obedece às regras na condição de os outros também o fazerem, e é este aspecto que permitiu a criação da cultura, das escolas, da electricidade, etc., é este contrato social o fundamento da eticidade. A teoria do contrato social hobbesiana não prevê o altruísmo, cada pessoa está determinada a fazer parte do acordo e a respeitar as regras por simples interesse pessoal. Mesmo os actos que nos parecem mais altruístas têm por base uma motivação pessoal. Isto acontece porque somos animais racionais, e não somente animais guiados por instintos.
Mas se a ética apenas diz respeito a animais racionais, porque nasce de um acordo estabelecido por estes e o altruísmo parece não passar de uma ilusão, então como se justifica o comportamento altruísta puro verificado quer em certos homens quer sobretudo em diversos animais de várias espécies? Os animais não têm capacidade de firmar acordos, que contemplem regras, valores, normas ou leis, então como podemos justificar determinados comportamentos relatados no quotidiano de formas altruístas nos homens e nos animais, sem que daí se consiga retirar qual o proveito que cada um tira desse comportamento, como é exemplo o caso relatado do famoso chimpanzé Washoe que salva um outro que tinha caído a um fosso apesar de não ter tido qualquer relacionamento com ele anteriormente, ou os vários outros exemplos presentes no livro, Quando os Elefantes Choram, de Jeffrey Masson e Susan Macarthy? Uma resposta que considero ser a mais correcta é apresentada em A Vida Emocional dos Animais, de Marc Bekoff, que faz a distinção entre moral e ética, definindo a ética como aquilo que permite distinguir o que é uma acção correcta ou não, enquanto a moral diz mais respeito aos costumes, ao comportamento de um indivíduo numa sociedade, «pode pensar-se na moralidade como um comportamento destinado a promover (ou pelo menos a não diminuir) o bem dos outros. A moralidade é essencialmente um fenómeno social.» (Bekoff, 2008: 124). Esta distinção é de suma importância, porque coloca a ética no domínio distintamente humano, enquanto a moral pode ser expandida a todos os animais que apresentem algum tipo de comportamento social, que vivam em comunidade. Como Bekoff salienta, o comportamento social inclui a cooperação, reciprocidade, empatia, ajuda, etc. Podemos ver todos estes comportamentos em vários animais das mais variadas espécies, Konrad Lorenz escreveu um ensaio em que relata pormenorizadamente o comportamento animal e humano, e demonstra que os factores que determinam um comportamento social nos animais e nos humanos são inatos (cf. Lorenz, 1975: 123-133). O próprio Bekoff apresenta vários exemplos de cooperação e ajuda entre as diferentes espécies. Isto não contraria aqueles que defendem que os humanos são superiores aos animais, nem os desmentem, simplesmente não coloca os animais no mesmo nível evolutivo que os seres humanos, porque os seres humanos têm ética e os animais apenas podem apresentar códigos morais de comportamento. E mesmo a moralidade não é igual em todos os animais, há graus de moralidade, e o homem situa-se claramente no topo da pirâmide moral. Isto não faz do homem um ser superior, mas antes um ser mais evoluído, foi esse grau de evolução superior que permitiu ao homem passar da moral à ética. Já Darwin afirmava no livro A Origem do Homem, que qualquer animal que se desenvolva como um homem, poderia ficar habilitado das capacidades humanas, logo, da capacidade moral, sustentava uma continuidade entre os sentimentos sociais dos animais e a moralidade humana. Nesta linha segue também Frans de Waal, que diz que assim como as características físicas do corpo são resultado do processo evolutivo, também a moralidade o é, a moralidade humana conserva e possui uma moralidade com outros animais (é como a figura da matrioska, em que uma figura pressupõe outra), existe uma ligação ontológica entre as camadas superiores no homem com as camadas interiores presentes no homem mas também nos animais.    
Então onde está a origem da moralidade nos homens? E nos animais? E o que permitiu os seres humanos evoluírem de seres morais, para seres morais com ética? Uma possível resposta encontra-se na ciência, mais propriamente na neurociência, que nos prova de certa forma que os animais também podem ser seres morais. O factor determinante da passagem do ser humano moral para um ser moral ético, foi o facto de a consciência conseguir libertar-se do vínculo dos instintos, para gerar novas soluções para os problemas. A neurociência tem desenvolvido vários estudos no sentido de se “conhecerem” os neurónios da moralidade, e reconheceu com mais ou menos consenso que estes se encontram nos lobos pré-frontais do córtex cerebral, é ele que fornece o fundamento psicológico daquilo que se considera ser a mente humana, é onde se encontra a dimensão espiritual da espécie humana. As áreas pré-frontais do córtex dos humanos são muito mais desenvolvidas que a de todos os outros animais, o que possibilita a capacidade de o intelecto distinguir entre as diferentes situações e condições, fazer escolhas, seguir determinados valores e objectivos, antecipar nas nossas mentes as situações possíveis ou prováveis e o efeito das nossas acções, distinguir o que é certo do que é errado, ou seja, estabelecer os princípios morais que orientam os nossos comportamentos (cf. Frankl, 2003: 129). António Damásio, nas suas investigações das funções dos lobos pré-frontais descritas no livro O Sentimento de Si, estabeleceu os lobos pré-frontais como o centro da moral do cérebro. Investigou vários casos de pacientes que sofreram graves danos nos lobos pré-frontais, que tinha como consequência a incapacidade de manterem relações sociais, preocupações com os outros ou qualquer sentido de responsabilidade. Contudo, há indivíduos cujos lobos frontais não sofreram qualquer dano, e mesmo assim apresentam um comportamento anti-social e imoral, porque têm a capacidade de neutralizar ou inibir a função dos neurónios morais, isto é possível porque os seres humanos são seres racionais, nos animais isso não acontece, por este motivo talvez os animais sejam mais morais que os humanos, ou pelo menos mais “puros”.
            Os fundamentos neurológicos da nossa consciência permitiram que o homem se desvinculasse dos instintos, para gerar novas soluções para os problemas. Este facto fez com que o prosencéfalo se desenvolvesse de uma forma extraordinária nos humanos, o que não aconteceu com as restantes espécies, e que dotou a nossa espécie de uma enorme vantagem sobre todas as outras. O que levou o homem a desenvolver extraordinariamente esta zona cerebral foi o facto de previamente já possuir consciência, daí nos animais o seu desenvolvimento não ser tão significativo. Os nossos antepassados hominídeos tiveram uma área do cérebro que foi capaz de transformar os seus reflexos instintivos em hábitos, com vista a superar as novas condições para as quais os instintos não os haviam preparado.
Mutatis mutandis, é o que de certa forma também defende Yves Christen, que salienta precisamente este facto, que os humanos não têm o monopólio das estruturas neuronais, a hormona oxitocina – que pode estar ligada a diversos comportamentos tais como, reconhecimento social, vinculação, confiança e comportamento materno – está presente em todos os mamíferos, e pode estar na base da moralidade. Desta forma, o homem distingue-se das restantes espécies animais apenas por um grau de desenvolvimento superior, e não por género. O homem distingue-se dos restantes animais por ser um fabricante de utensílios, por ser um ser ético e moral, isto é, por ter evoluído de hominídeo para homo sapiens. Contudo, é possível notar que quanto mais próximos de nós são os animais em termos evolutivos, mais coisas partilham em comum com os humanos, como o altruísmo, a cooperação, o sentido de ajuda, e alguns até já são capazes de fazer uso de utensílios, como demonstrou Lestel, no seu livro As Origens Animais da Cultura, e também no estudo realizado por Vauclair, no livro A Inteligência dos Animais, onde demonstra a capacidade do emprego de utensílios por certos animais, relata alguns casos desse emprego, e consegue explicar behavioristicamente e através de estudos imagiológicos a existência de uma cognição social nos animais não humanos (cf. Vauclair, 1992: 37-49). Isto leva-nos à conclusão a que chegou Bekoff, e que cada vez está mais presente em todos os seres humanos, de que não existem diferenças assim tão significativas entre os animais e os humanos, essas diferenças são mínimas, e é muito mais o que partilhamos com eles que aquilo que nos distingue. 
Retomando a questão de Hobbes, talvez os animais sejam mais morais que os humanos, os homens são muitas vezes bestiais nas suas inclinações e capazes de vícios com os quais os animais jamais sonharam. A capacidade da razão e do livre-arbítrio possibilitam o homem descer a profundezas morais infinitamente maiores do que poderiam os seres brutos, o instinto animal é muito menos falível que a razão humana. Os animais não se embebedam, não são mentirosos nem são sádicos. John Locke no Ensaio Acerca do Entendimento Humano tinha esta frase «a mente activa do homem, podia conduzi-lo a uma brutalidade abaixo do nível dos bichos, quando ele renuncia à razão». 

Ricardo Carvalho

3 comentários:

  1. Caro Ricardo Carvalho:

    Só hoje e por acaso "bati" com os olhos no «espectro invertito»... Parabéns pelo blog e obrigado pelos temas que aqui nos apresenta.

    Uma questão: o Homem possui instintos? Ou chamamos instintos a uma outra coisa?...

    Cumprimentos.

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    1. Caro Armando Inocentes:

      Obrigado pelo elogio do blogue e pelo seu interesse nos temas.

      A questão me coloca não é de fácil resposta, falamos de facto diversas vezes de instintos, mas será que dominamos o seu significado? Eu teria grande dificuldade em adiantar uma definição exacta de instintos, mas nos meus textos chamo instintos às inclinações naturais que o homem tem, como o de sobrevivência, que partilha com todos os outros animais.

      Cordialmente,

      Ricardo Carvalho

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  2. Obrigado! Compartilho a sua opinião.

    Com os meus cumprimentos,

    Armando Inocentes

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