quinta-feira, 7 de julho de 2011

O que é a arte - perspectiva formalista, Fry e Bell

O formalismo vai evoluir de forma bastante diversa, e há dois grandes momentos dessa evolução; a música por um lado e as belas arte por outro.
Temos por um lado um grande desenvolvimento do formalismo na música a partir da obra de Eduard Hanslick, um grande crítico musical de Viena, que em 1854 publicou um livro importante Sobre o Belo Musical, onde toma partido dos chamados brahmsianos (Brahms) contra os chamados wagnerianos (Wagner). Na época destes dois compositores havia uma grande disputa entre os seus adeptos, Wagner representava a música ligada à poesia (a música pura seria uma tontice, a música só faz sentido quando estiver ligada à poesia e à dança), pelo contrário Brahms e os seus adeptos defendiam que a música deveria existir como uma pura forma. E é em defesa de Brahms que Hanslick escreveria. Hanslick vai desmontar a ideia de que a música é capaz de transmitir imagens ou sentimentos. Sempre que ao ouvimos uma peça musical, tentamos colar-lhe imagens ou insistir na ideia de que estão a ser expressos determinados sentimentos e emoções, associamos ideias. E esta associação de ideias acaba por nos distrair daquilo que é essencial, que é a escuta da forma musical livremente. A música é um conjunto de formas musicais em movimento, se nos distrairmos dessa evolução de formas e movimento não temos acesso ao que é música. 
No fim do século XIX as mesmas ideias são transpostas em termos sistemáticos para o âmbito das artes visuais, através da obra de dois críticos e filósofos da arte ingleses, Roger Fry e Clive Bell, que integravam o chamado grupo de Bloomsbury, que incluía, para além dos dois, os romancistas E. M. Forster e V. Wolf, o economista J.M. Keynes, os pintores D. Grant e V. Bell e o jornalista L Woolf. Era um grupo que pretendia mudar o estado da situação sobretudo ao nível dos estudos artísticos e da compreensão do que era a arte em Inglaterra. O grupo inspirou-se fortemente nas ideias do filósofo G. E. Moore, que no fim do século XIX publicou um livro, Principia Éthica, que iria ter grande influência, onde defendia uma espécie de intuicionismo ético. No livro Moore desmontava todas as formas de justificação conceptual dos actos bons e maus para chegar à conclusão que a única forma de justificarmos o que é bom e mau é de alguma maneira apelando a uma espécie de intuição particular, a bondade nas coisas capta-se através de uma intuição. Esta ideia vai passar para o círculo de Bloomsbury, que defendia a ideia segundo a qual teríamos uma capacidade particular de recepção das formas que é pré-discursiva, se formos capazes de retirar todas as coisa que se depositam entre nós e as formas dos objectos, seremos capazes de ter um acesso intuitivo puro a essas formas.

·         Roger Fry

No texto Um Ensaio de Estética Fry pretende responder a esta questão; «Será que alguma vez chegaremos a concluir algo sobre a natureza das artes gráficas que consiga explicar todos os sentimentos que lhes devotamos, que coloque as artes visuais, finalmente, numa espécie de relação com as outras artes e que não nos deixe nesta perplexidade extrema, engendrada por uma qualquer teoria da mera imitação?» (Fry, apud Moura: 59-60). Fry começa por distinguir vida real de vida imaginativa:
Vida real/responsiva: sujeita à relação causa efeito (é a vida de todos os dias). Submetidos à vida responsiva estamos presos a uma teia de causas e consequências, os nossos actos têm consequências sobre os outros e os dos outros sobre nós.  
Vida imaginativa: se nos concentrarmos em aspectos da vida humana, conseguimos libertar-nos da relação de causa efeito e ter experiências que normalmente nos escapam, podemos libertar-nos da teia de causas e consequências.   

Um dos exemplos que Fry dá no texto é o de pedir que imaginemos um touro a avançar sobre nós na vida real e esse touro avançando sobre nós na sala de cinema; quando vemos o touro avançar sobre nós na vida real pensamos logo em fugir dali o mais rápido possível, temos de nos envolver no cálculo das causas e consequência daquilo que se está a passar; quando vemos o mesmo touro avançar sobre nós na sala de cinema podemos começar a ter uma percepção mais nítida da própria experiência, podemos concentrar-nos em aspectos do que é ter uma experiência de algo, porque não estamos submetidos às consequências do que poderá advir dessa situação. Com a vida imaginativa conseguimos uma “liberdade face a condições externas necessárias” (Fry, apud Moura: 65), esta é a primeira grande vantagem da arte, libertar-nos da vida responsiva para permitir-nos aceder à vida imaginativa. Imersos na vida prática estamos também imersos num mundo de etiquetas, olhamos para os objectos e não vemos formas apenas vemos utilidades, há uma espécie de filtro constante entre nós e as formas que são precisamente as etiquetas de utilidade que colamos às coisas que nos envolvem, algo que se deve ao facto de ao longo dos séculos termos adquirido aquilo que Fry designa por “especialização da visão”. Heidegger, que em certa medida está próximo dos ideais formalistas, dizia a propósito que, “a utilidade das coisas pisca-nos o olho”. Ao longo de séculos ocorreu uma especialização da visão, passamos a olhar para os objectos como utensílios. A arte serve para nos libertar dessa visão, permite dar conta das coisas em si mesmas, de termos uma relação directa com a sua entidade formal. Tal como Heidegger, para Fry a arte também serve para nos libertar desta visão especializada, para retirar as etiquetas às coisas e expô-las como puras formas, podemos ter acesso à realidade em si (Fry pensa estar na linha de Kant).
Há um exemplo que é sempre enumerado por Fry (e também por Bell) que é o pintor Cézanne, por ser um artista que pegou nas coisas e tirou-lhes o invólucro de serventia, procurando apresentar as coisas como são em si mesmas. Ao vermos um quadro de Natureza Morta de Cézanne vemos que nada daquilo está de acordo com as regras comuns da perspectiva clássica, podemos ver o cesto de fruta como se estivéssemos a observa-lo de cima, depois vemos uma maçã como se estivéssemos mesmo de frente a ela, portanto há uma diversificação dos pontos de vista, uma libertação da perspectiva única e uma tentativa de fazer com que o objecto se torne dominante na apresentação, é o objecto quem determina a forma como o observamos e não o contrário.
Estes objectos, que a arte consegue entregar de uma forma pura, excitam aquilo que Fry chama “intensidade desinteressada da contemplação”, contemplamos os objectos tentando chegar aquilo que os objectos são em si mesmos. Esta intensidade desinteressada é obtida através de formas que se caracterizam por quatro características fundamentais:
1)      Ordem: uma forma ordenada, coerente e coesa faz com que o objecto seja bem ordenado. Sem ordem as nossas sensações estariam perturbadas ou confusas.
2)     Diversidade\Variedade: sem variedade as nossas sensações não seriam suficientemente estimuladas. A ideia de que o belo é ordem na variedade vem desde Tomás de Aquino; e quando no séc. XVIII, F. Hutcheson procura um critério para distinguir um objecto de arte de um objecto comum, encontra a uniformidade na variedade, e isto é recolhido para o formalismo.
3)     Consciência de uma finalidade: olhamos para o objecto e apercebemo-nos de que responde a um problema colocado pela arte, tem a finalidade inerente à própria forma. Este é o elemento mais aceitavelmente Kantiano, é uma inspiração Kantiana da “finalidade sem fim” (zweckmässigkeit ohne zweck), finalidade estritamente formal. Consciência de um objectivo que se resume à própria forma.
4)     Unidade: sem unidade não seriamos capazes de atingir uma contemplação completa do objecto, a obra deve, por isso, oferecer-se na integridade, por exemplo; a moldura do quadro ajuda-nos a perceber essa unidade. T. Adorno (filósofo da música que estabeleceu como objectivo fazer uma filosofia da música moderna) definiu a música como a “antecipação do fim”. E esta ideia encaixa muito bem aqui: é a consciência do fim que dá unidade à peça musical.

Em todas as formas encontramos estes princípios. Estes princípios gratificam a nossa necessidade de percepção de forma. No caso particular das artes plásticas, são complementados com estratégias a partir das quais o artista é capaz de despertar as nossas emoções:
1)      Ritmo da linha: ritmo do desenho dos objectos;
2)      Massa: a inércia e poder de resistir aos movimentos;
3)      Espaço: cada forma visual proporciona um espaço diferente;
4)      Luz e Sombra;
5)      Cor: apesar de ser um filósofo da pintura, Fry participa de um certo preconceito filosófico sobre a cor (a cor é muita dada à construção de metáforas).

A arte proporciona uma reacção emocionada, e essa reacção emocionada explica-se em parte porque as formas proporcionadas pela arte estão baseadas naquilo que Fry chama, quase no fim do texto, “as necessidades fundamentais da nossa natureza física e fisiológica” (Fry, apud Moura: 74). Ou seja, acabava por haver duas explicações não completamente compatíveis para a importância e o papel da arte na vida do homem. Por um lado temos a visão inicial da vida imaginativa, do modo como a arte liberta as formas das suas etiquetas e oferece-nos a forma das coisas tais como elas são, mas no fim Fry aponta uma outra teoria estética, que hoje se chama cognitivismo, e que consiste em explicar a arte como uma resposta às nossas necessidades fisiológicas, nós estamos constituídos para percepcionar o mundo de determinada maneira e a arte constrói objectos adequados à maneira como estamos preparados para perceber as coisas, e é essa adequação que nos emociona. As formas que nós apreciamos têm uma relação cinestésica com o corpo, no sentido de provocarem uma reacção muscular no corpo e isso ajudaria a realçar a importância da arte. Fry acaba o seu texto apontando no sentido de um certo cognitivismo em termos de explicação da arte.

·         C. Bell

Bell também vai insistir na importância da forma, mas não vai avançar nenhum tipo de explicação para isso, porque para Bell todas as tentativas de explicar a importância da forma para o observador são modos de limitar o poder dessas formas. O texto fundamental de Bell é o livro Arte, onde Bell tenta responder a uma questão semelhante à de Fry; por que é que somos tão profundamente comovidos por formas relacionadas de um modo particular? Para responder a esta questão Bell vai tentar colocar duas hipóteses, a estética e a metafísica:
1)        Hipótese estética: vive da tese da bifurcação e confunde-se com a ideia de que só através da arte temos acesso a aspectos da experiência que normalmente nos escapam, acesso a uma emoção estética, às formas puras. O elemento representativo (a história que é contada) não interessa, o que conta é a contemplação formal. Segundo Bell, para apreciar arte não precisamos trazer nada da vida, apenas um sentido de forma, cor e de conhecimento do espaço tridimensional. Quando o espectador procura ir além da forma revela uma sensibilidade diferente. Bell apresenta três princípios:
a)      Ausência de representação: a verosimilhança não é o objectivo.
b)      Ausência de virtuosidade técnica: se este elemento estiver presente já estamos a olhar ao conteúdo.
c)      Interesse por uma forma sublimemente impressionante.

Estes princípios encontram-se na pintura dos primitivos italianos. Daí a preferência de Bell por eles. A hipótese estética significa também que através da arte somos capazes de nos afastar das emoções da vida. A emoção estética não deve ser confundida com o reino das emoções comuns, e aqui está presente um afastamento face ao expressionismo: permitir que nos afastemos das emoções comuns, é uma explicação para a importância da forma que vale por si só, aquilo que Bell chama a forma significante. «Usar a arte como meio de aceder às emoções da vida é o mesmo que usar um telescópio para ler as notícias» (Bell, apud D’Orey: 43). A arte proporciona-nos formas significantes, e tudo o que podemos dizer da forma significante é que ela envolve os três princípios acima descritos, proporciona-nos um tipo muito especial de emoção a que Bell chama “emoção estética”.  
2)        Hipótese metafísica: estamos habituados a ver não puras formas mas “meios amortalhados em associações”. Olhamos para os objectos como meios e não como fins; estamos sempre a associar as coisas entre si e perdemos as relações das coisas em si mesmas. O artista, pelo contrário, detém uma “apreensão apaixonada da forma” e por isso é o único capaz de libertar esta mortalha das coisas. Aquilo que normalmente tomamos como essencial, por exemplo, a verosimilhança, não é senão um pretexto para organizar as formas, e os artistas precisam de um pretexto; mas fazer um retrato não é essencial, o essencial é forma que se vai criar na mente do artista a partir daquele pretexto. O artista, tentando responder a um problema, cria uma forma que vale por si só. Somos particularmente emocionados porque através da arte temos acesso às coisas como fins em si mesmas (emoção metafísica). Ao procurar captar a coisa em si mesma, a arte vai para além daquilo que é percepcionado (a arte não está interessada em fazer uma cópia). Por isso é que a reacção das pessoas comuns à grande arte é de desconforto, “de stress”. O incómodo resulta do facto de estarmos perante objectos em si mesmos, desligados das associações, da instrumentalização.

E a partir desta relação entre arte e coisas em si mesmas Bell estabelece uma ligação entre arte e religião, há um certo misticismo que resulta da hipótese metafísica. De acordo com Bell, há duas actividades humanas que tendem a ver as coisas como fins e não como meios: a religião e a arte. A única diferença é que a religião cria uma hierarquia entre as coisas, há coisas mais valiosas que outras, enquanto na arte qualquer objecto pode ser digno de forma significante. É por isso que as épocas de fervor religioso são normalmente um período fecundo para a arte (provavelmente não teríamos a obra de Bach fora da época da reforma/contra-reforma). Este tipo de conclusões levou a que muitos comentadores acusassem Bell de um certo misticismo pouco consentâneo com o seu formalismo.
De tudo isto resulta que para Bell é inútil falarmos de evolução na história da arte, por isso é que Bell privilegia os primitivos italianos a pintores como Rafael, Giotto ou autores que criam dentro das leis da perspectiva clássica. A proporção das formas significantes pode ser obtida em qualquer momento da história da arte.

                   Ricardo Carvalho

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