sábado, 23 de julho de 2011

Não-coisa

A história da humanidade caracteriza-se por várias fases, tal como acontece com todas as outras espécies de animais, contudo, a evolução do ser humano atingiu um grau de desenvolvimento que nenhuma outra espécie alcançou. Primordialmente funcionava como os outros animais, tinha as mesmas necessidades, como alimentar-se, proteger-se, procriar e sobretudo tentar sobreviver o máximo possível. A orientação do homem neste mundo ambiente não representava uma dificuldade de maior, porque o homem movia-se na natureza e identificava-se bem com ela. Até aqui o homem era como outro animal qualquer, a diferença fundamental surgiu com o diálogo da mão com o cérebro (cf. Vidal-Naquet, 2007: 14), de onde nasceu o utensílio artificial, que propiciou o desenvolvimento da técnica e que possibilitou a criação de instrumentos. O homem começa a criar objectos (artificiais) que não se encontram na natureza alterando o mundo ambiente em que vive.
A sua qualidade de homo faber, um ser criador, dotado de um psiquismo superior ao psiquismo animal mais elevado, faz com que o homem se revele como inventivo nos mais diversos domínios, nomeadamente os tecnológicos, científicos, artístico, literário, filosófico e religioso, ou seja, um ser dotado de desejos e aspirações, que sente a necessidade de se exprimir. Esta noção, de um ser criador e superior, surge da ruptura entre natureza e cultura (objectos artificiais), o homem que numa primeira fase vivia apenas rodeado pela natureza, encontra-se agora rodeado por uma sobrenatureza, com objectos reais e artificiais. É neste contexto que surge a questão da não-coisa, na sequência das suas meditações sobre o papel do design no futuro, Flusser vê surgir uma nova fase na história do homem, a das não-coisas, o mundo ambiente de coisas está a ceder lugar a um mundo de não-coisas.
Flusser caracteriza as coisas como “objectos mensuráveis, quantificáveis e que se podem facilmente manipular”, (incluindo como coisas o homem, porque a ciência transformou-o num objecto como todos os outros). A orientação do homem neste mundo ambiente já não é tão simples como acontecia quando apenas tinha objectos naturais. Para se poder orientar neste mundo, o homem tem de saber distinguir o que são coisas naturais de artificiais. Esta distinção não é tão simples como se pode supor à partida, e Flusser chama a atenção para isso mesmo com o exemplo da hera que nasce nas casas, é difícil saber se ela é natural ou artificial, porque por um lado é uma planta viva (natural), mas por outro lado é plantada e organizada de acordo com a estética do jardineiro (artificial). A distinção entre o que é a natureza real e a cultura parece já não fazer sentido neste mundo ambiente, dada a quantidade de objectos artificiais que foram produzidos e a sua acoplação com a natureza. Aquilo que faz a distinção está, de certa forma, oculto, por isso a orientação neste mundo ambiente não é de forma alguma fácil.
O homem ao “distanciar-se” dos animais já não se limita apenas a sobreviver mas sente necessidade de viver, e para tal precisa de encontrar o melhor caminho para a concretização desse desígnio. Flusser, à maneira heideggeriana, identifica a razão da existência humana, como “o ser para a morte”. Viver significa “ir de encontro à morte”, é para isto que nos orientamos. As coisas aparecem-nos como obstáculos neste trajecto de encontro à morte, funcionam como uma resistência ao seu livre percurso, são problemas (em grego objecto é probléma) que têm de ser resolvidos para desobstruir o caminho. Assim, ”viver significa resolver os problemas para morrer” (Flusser, 2010: 96). Estes problemas são resolvidos transformando as coisas intratáveis em coisas manipuláveis. Quando o homem encontra um problema que não pode resolver significa que chegou ao fim do seu percurso, e realiza-se existencialmente, ou seja, morre, este problema não solúvel é a coisa última. Desta forma, as coisas representam a condição da existência humana, para viver apenas é necessário agarrar-se às coisas. Neste mundo o homem sente algum conforto, porque conhece aquilo que é necessário para viver.
A relação especial que o homem mantém com a natureza deve-se ao facto de ter uma mão que pode agarrar os objectos e que os in-forma. O homem com o poder de manipular os objectos vai transformá-los sucessivamente até conseguir esgotar toda a informação contida no interior da sua forma. Este consumo exaustivo dos objectos faz com que eles percam a utilidade e se transformem em “lixo” que regressa à natureza. O mundo já não é só o conjunto de objectos naturais e artificiais, é também o dos resíduos. A história humana que parecia cingir-se à relação entre natureza e cultura tem de ser repensada em função da relação entre natureza, cultura, resíduos e novamente natureza. A história humana entra num círculo vicioso, onde o progresso não passa de uma ilusão. A solução para sair deste círculo vicioso consiste em encontrar informações que não possam ser esgotadas, e para isso é necessário criar algo que a mão não possa agarrar. É necessário passar de uma cultura material para uma cultura imaterial. As não-coisas são a tentativa dessa criação de cultura não material, porque são algo que a mão não pode agarrar.
O que significa de facto uma não-coisa? Pela semântica da palavra poderíamos ser levados a pensar que não-coisa significa a ausência de uma coisa. Todavia, não é isso que Flusser entendeu pelo neologismo, as não-coisas têm uma existência própria, a diferença caracteriza-se por as coisas serem objectos materiais e as não-coisas imateriais. Flusser identifica as não-coisas como informações, «A informação sempre existiu…As informações que agora invadem o nosso mundo-ambiente e substituem as coisas nele contidas são de um género que nunca existiu: trata-se de informações imateriais» (Flusser, 2010: 97). Muito embora a informação sempre tenha existido dentro das formas das coisas, este tipo de informações são diferentes, por serem impalpáveis (como por exemplo, as imagens das televisões ou o software dos computadores, etc.), as não-coisas são “inapreensiveis”, isto é, não se deixam agarrar ou apoderar-se delas, «por muito que possam ser verdadeiras no plano ontológico, no plano existencial trata-se de uma ilusão» (Flusser, 2010: 97). As não-coisas suplantaram as coisas, alterando completamente o mundo ambiente. A passagem de um mundo ambiente puramente natural para um mundo ambiente natural/artificial não constituiu um problema de maior para o homem, uma vez que, a diferença apenas se situa num nível gnosiológico, o mundo continua a ser constituído por coisas que o homem pode, de alguma maneira, controlar. Todavia, a mutação do mundo ambiente de coisas para não-coisas faz com que homem se depare com maiores dificuldades de orientação e com que perca o conforto de saber o que tem de fazer para viver (agarrar-se às coisas).
Neste novo mundo o interesse das pessoas desloca-se da posse das coisas para a fruição da informação. Já não interessa tanto produzir coisas, mas antes não-coisas. O mundo ambiente torna-se cada vez mais espectral, no sentido de ser mais difícil identificar os objectos que o constituem, o que obriga a uma nova matriz da vida e uma nova perspectiva dos valores. Com a valorização das não-coisas as coisas perdem o seu valor que é transformado em informação. As não-coisas são intangíveis, por isso as mãos tornam-se também elas inúteis, o homem deixa de ter acção, porque a compreensão e produção ficam destinadas para as inteligências artificias, para os programas, para as não-coisas.
Este mundo vindouro acarreta consequências ou efeitos sociais, políticos, morais, etc. O ser humano liberta-se do trabalho e fica desempregado (o desemprego na actualidade deve-se precisamente à situação imaterial que o homem encontrou). A mão torna-se inútil mas não as pontas dos dedos, que passam a ser essenciais nesta nova tarefa que o ser humano tem pela frente. A produção de informação, o jogo de transformações de símbolos, só é possível com a ponta dos dedos. Estes vão ser necessários para carregar em teclas, que transformam os símbolos em algo perceptível. O homem ao decidir em que tecla carregar passa a ter a liberdade de escolha e decisão que antes não tinha. Mas esta liberdade é ilusória, porque o homem apenas pode decidir e escolher dentro dos limites dos programas, é uma liberdade pré-programada, a escolha situa-se sempre dentro de algo predefinido.
Na actualidade encontramo-nos no ponto de convergência das duas etapas, estamos a assistir e a testemunhar à passagem de um ciclo para outro. O nosso mundo ambiente ainda é constituído por muitas coisas, contudo, cada vez mais surgem não-coisas e cada vez mais dependemos delas e perdemos o seu controlo. É talvez devido a este facto que o nosso tempo assistiu e continua a assistir a uma desorientação generalizada, o homem parece que perdeu o sentido da sua existência e não consegue encontrar o seu caminho (muita da arte que hoje é produzida reflecte essa desorientação). O homem se por um lado ainda se tenta agarrar às coisas, por outro lado já não consegue agarrar aquilo que realmente o influencia e domina. Esta situação apenas cessará quando as coisas forem deixadas definitivamente de lado.
 E se para já as não-coisas ainda se encontram muito presas a objectos materiais, é plausível imaginar que no futuro a situação se inverta, cada vez mais os objectos materiais são mais pequenos e contêm cada vez mais informação, um objecto material (coisa) pequeno pode conter um sem número de informações (não-coisas), por exemplo, as memórias dos computadores. Este futuro poderá não estar tão longe como parece, cada vez mais as não-coisas estão a automatizar-se e tornarem-se autónomas, já não será o objecto material a condicionar a informação, é mais o inverso, como acontece por exemplo com a tecnologia multi-touch, em que o suporte material vai desaparecendo, já não é necessário um rato, um teclado, um monitor, “apenas” são precisos os dedos. A liberdade ilusória transforma-se num totalitarismo programado. Este totalitarismo não é necessariamente mau, uma vez que a informática cada vez mais nos abre a possibilidade de escolha, isto é, cada vez a ilusão é maior ao ponto de no futuro parecer efectivamente algo real. As possibilidades de escolha vão ser de tal ordem que ultrapassarão a capacidade do ser humano as apreender, as decisões vão parecer actos absolutamente livres. Talvez a sociedade do futuro viva na utopia de hoje, isto é, numa sociedade emancipada do trabalho que acredita ser absolutamente livre. 
O homem que agora é visto como Homo faber, que trabalha e que cria, está em vias de extinção, para dar lugar a um novo homem, o homo ludens, aquele que joga. O homem torna-se um jogador de símbolos. Este jogo passa a ser o novo elemento da cultura. Isto pode trazer implicações profundas no homem, a nível intelectual, físico e moral. O “novo” homem ao deixar de ter acção e de criar fica mais estático, mais sedentário, sem tanta agilidade e destreza gestual, a inteligência é substituída por inteligências artificiais, a moral deixa de fazer, de certa maneira, sentido, porque é difícil imputar responsabilidades morais a robots ou aos seus diversos programadores, que por sua vez se basearam noutros programas, entramos num ciclo vicioso. Talvez o ser humano esteja hoje no seu limite de desenvolvimento e agora entre num processo de regressão, deixando de ter a fisionomia que hoje apresenta, para voltar a ter o aspecto côncavo que já o caracterizou. Sendo assim ou não, o provável é que surja uma nova espécie de ser humano. Contudo, o essencial mantém-se, o homem vai continuar a “ir de encontro à morte”, mas em lugar de morrer devido a problemas não resolvidos, das coisas, morre de erros de programação, de não-coisas. A razão da sua existência permanece no “ser para a morte”, quer esta seja a coisa última ou a não-coisa última. Este facto aproxima este novo ser humano que se avizinha do homem actual e do homem passado, ou seja, o homem continua a ser “ele e as suas circunstâncias”, quer elas sejam de coisas ou não-coisas.  
Como conclusão é de salientar o facto de o conceito de não-coisa não ser um fenómeno tão recente como possa parecer. Se analisarmos o ser o humano verificamos que este é precisamente constituído por coisas e não-coisas. Descartes salientou precisamente este facto, ao fazer notar a divisão que existe no ser humano entre aquilo que é material e aquilo que é imaterial. O corpo pode ser visto como uma coisa e os pensamentos ou os Qualia, como não-coisas, muito embora, as não-coisas de Flusser sejam algo muito diferente da res cogitans cartesiana, porém, esta analogia pode ajudar a evidenciar o novo ambiente que nos espera e as dificuldades que vai apresentar. O corpo, aquilo que é material, já está praticamente esgotado, hoje o homem sabe quase tudo que há para saber acerca do corpo, no entanto, relativamente à mente, àquilo que é imaterial no ser humano, o homem praticamente não saiu do lugar, ou seja, continua a saber muito pouco acerca destes fenómenos, devido precisamente ao seu carácter imaterial, que faz deles algo subjectivo e de difícil análise e controlo. Com as não-coisas de Flusser é provável que algo de semelhante suceda num ”novo” mundo em que as coisas estão praticamente esgotadas, e em que as não-coisas, aquilo que é imaterial, sejam algo difícil de analisar, controlar e com um progresso lento devido ao seu carácter espectral. 

Ricardo Carvalho
Vera Alves

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