sexta-feira, 1 de julho de 2011

Kant - A Ideia Estética


Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant distingue aquilo a que chama beleza pura ou livre (arte À La Grecque) de beleza dependente (Conceito):
Beleza pura: encontra-se exclusivamente na forma, não é necessário adicionar quaisquer conceitos, ex. música sem palavra, não programática, e determinadas estruturas das artes decorativas, ex. aquilo a que Kant chama “desenhos à la grecque”. Há uma relação desinteressada, ideia de desinteresse, a beleza livre agradaria pela sua pura forma.
Beleza dependente: toda a beleza que depende de algum conceito. O conceito perturba a nossa relação com o objecto. De certa maneira, é uma beleza secundária, inferior.
 Ora, quando a beleza depende da relação a conceitos, como no caso da poesia, então não temos acesso a uma pura forma, neste caso estamos determinados por algo cognitivo da nossa relação com a forma. Se começássemos a ler a critica da faculdade de julgar e parássemos à volta da secção XVI parecia-nos que Kant era um formalista puro e duro, a teoria da bifurcação está bem presente nas primeiras secções, é possível separar a consideração só pela forma e a consideração pelo conteúdo. O conceito atrapalha a nossa relação com a forma, e portanto dá-nos acesso a uma experiência estética relativamente menor, porque não é uma relação estritamente baseada no contacto com uma forma. No entanto, mais tarde, Kant complexifica as coisas de modo a introduzir no seu sistema a arte que ele antes teria classificado como uma beleza dependente. Maior parte da arte vive daquilo a que Kant chama; os conceitos indeterminados. Surge então a distinção entre conceitos determinados e indeterminados;
a)        Conceitos determinados; os conceitos determinados são conceitos com uma determinação objectiva, que criamos através do modo de funcionamento cognitivo normal. Há algo do objecto que determina esses conceitos, por exemplo, o nosso conceito de mesa está dependente daquilo que é o objecto mesa, ou seja, para alcançar o conceito de mesa, nós temos a possibilidade de encontrar um correspondente objectivo exterior.
b)      Conceitos indeterminados; nestes conceitos não conseguimos encontrar um referente externo. Os exemplos que Kant dá pertencem quase todos aos domínios da ética e da política (ex. conceito Majestade, Bem-aventurança, Vida Além-túmulo, Beleza), não existe referente externo para estes conceitos.
Para estes conceitos nós procuraríamos em vão um correspondente objectivo. Mas o nosso entendimento, o nosso sistema cognitivo, está montado expressamente para unificar os dados da experiência e para nos conduzir a conceitos objectivos claros e distintos e ao não encontrar este tipo de conceitos o nosso sistema cognitivo não sabe o que fazer. Acontece então que a imaginação vai propor imagens, vai propor aquilo a que Kant chama ideias estéticas, de modo a fazer aquilo que não se pode fazer, ou seja, encontrar um correspondente objectivo para estes conceitos. A arte dedica-se precisamente a isto, à tentativa de criar imagens para conceitos indeterminados. É mesmo a única forma de dar imagens a esses conceitos (ideias estéticas). Por exemplo, para o conceito de Majestade ou de soberania absolutista, a imaginação pode propor uma imagem como a Àguia de Júpiter, para a noção de bem-aventurança podemos recorrer a um verso de Withof “nascia a manhã como a tranquilidade nasce da vida justa”, a beleza seria representada por uma imagem da mitologia, o Pavão de Juno. Outro exemplo é a forma como Kant representa o cosmopolitismo, escolhendo um verso de Frederico II, em que este descrevia um belo pôr-do-sol e a certa altura compreendemos que ele está a falar de si próprio no fim da vida, tal como o Sol deu a volta ao mundo e compreendeu todas as coisas também o homem cosmopolita conheceu tudo, deu a volta ao mundo e pode descansar tranquilamente.
Todas estas metáforas correspondem à “ideia estética” proposta por Kant. O que acontece então na criação das ideias estéticas é que a imaginação como faculdade da criação de imagens – inferior às outras faculdades – propõe imagens para conceitos que não têm uma imagem possível, o entendimento que normalmente trata dos esquemas visuais, pega nas imagens da imaginação e tenta explica-las, conferir-lhes uma racionalidade, uma causalidade, uma substancialidade, etc. Tenta mostrar em que sentido é que essas imagens podem ser ilustrações da Majestade, da bem-aventurança, etc. Todavia, estas imagens da imaginação dão-nos «mais que pensar que o próprio pensamento», as imagens para os conceitos indeterminados são mais ricas do que a explicação dos conceitos. Mas é exactamente na explicação da imagem que o entendimento tenta demonstrar porque é que a Águia de Júpiter pode ser uma boa imagem da Majestade soberana (a águia não admite nenhum rival, nenhum tipo de domínio, e o trovão nas suas garras pode significar que tem o monopólio dos mecanismos da repressão, da violência dentro de um estado, e observando do alto sabendo tudo o que se passa pode castigar com um trovão todos aqueles que forem contra a sua autoridade). Mas o que se pode verificar é que nenhuma destas explicações consegue de alguma maneira explicar um manancial ilustrativo da ideia de estética proposta por Kant. Em que medida é que Pavão de Juno é uma ilustração da beleza? Podemos responder que é por o Pavão ter todas aquelas cores, que para aqueles que o admiram as suas cores não têm nenhuma utilidade, etc. O problema reside precisamente nesta tendência para terminarmos com um “etc” no fim dessa tentativa de explicação. E isto é um pouco o que Kant faz, isto é, colocar um grande “etc” nas tentativas do entendimento explicar o manancial da imagem proposta pela ideia estética. A imagem parece ser sempre mais do que a explicação, há elementos da imagem que são descobertos e deixados em aberto em cada explicação, e o entendimento volta então a aplicar-se a essa imagem, e esta revela-se de novo mais forte, mais superior ao entendimento e assim envolvemo-nos numa troca de informação, num diálogo entre a imaginação e o entendimento, que é aquilo a que Kant chama o «jogo livre das faculdades». É livre porque não está determinado objectivamente, é um jogo em que a imaginação e o entendimento funcionam de certa forma a sós, sem nenhuma determinação objectiva. Não há nenhum dado empírico que possa vir ajudar o entendimento a estabilizar a informação que retira da imagem proposta pela imaginação. Se fosse possível determinar algo objectivo para estas imagens o jogo livre das faculdades cessaria. 
O carácter imparável e inesgotável deste jogo é que explica, no fundo, a sensação particular que nós temos quando estamos diante do belo. Numa outra obra Kant define o conceito de prazer como aquilo que nós gostaríamos que nunca cessasse, e é por isso que podemos chamar a este jogo livre das faculdades, à sensação que ele proporciona o “prazer”. Porque envolvidos nele a imaginação e o entendimento não param de trocar informação. A força da imagem da ideia estética é tão forte que nós gostaríamos que esse jogo nunca parasse (prazer cognitivo). Ao longo desta relação a imaginação e o entendimento vão-se conhecendo melhor um ao outro, vamos percebendo de que forma é que o nosso sistema cognitivo está tão bem montado que é possível trabalhar em “circuito fechado”, ajuda-nos a compreender melhor como funcionamos em termos cognitivos (auto-conhecimento). Quando estamos ocupados em conhecer as coisas a imaginação fica entre parênteses, é uma serva do entendimento. Só no jogo estético, no jogo livre das faculdades, é que a imaginação toma a iniciativa.
Há dois conceitos que Kant associa ao jogo livre das faculdades; o de velocidade e de acordo. Através do livre jogo das faculdades aquilo a que nós vamos assistindo cada vez mais é à grande capacidade que a imaginação e o entendimento têm de concordarem entre si. O entendimento tende a explicar a imagem, mas porque não consegue totalmente esgotar a imagem ele volta a tentar aplicar-se a ela, a imagem serve e não serve às tentativas de explicação do entendimento. Ao longo deste acordo é possível perceber que há uma ligação especial, uma troca cognitiva entre a imaginação e o entendimento, como se fossem faculdades bem articuladas entre si. Outra noção importante é a de velocidade, a ideia de que quanto mais se trabalha este jogo mais veloz é a relação entre a imaginação e o entendimento. O livre jogo das faculdades proporciona aquilo que Kant chama uma “vivificação do ânimo”. Há medida que nos vamos apercebendo desta energia particular envolvida na relação entre a imaginação e o entendimento o nosso ânimo vai-se vivificando. Porque esta capacidade de explicar e ao mesmo tempo não ser capaz de explicar uma imagem (mental), de nos apercebermos simultaneamente da incapacidade da imagem mas ao mesmo tempo nunca desistir de tentar esgota-la, é talvez a melhor prova de capacidade intelectual de qualquer indivíduo. Na verdade, o que acontece é que a maior parte de nós perante determinadas formas acaba por sentir este jogo livre, acabamos por jogar o jogo livre das faculdades. Não existe nada que permita resolver questões de gosto (aqui Kant está de acordo com Hume), mas ao mesmo tempo existe um indicador cognitivo que nos permite saber quando é que o outro sente algo como eu. Este jogo livre das faculdades é tão importante para nós, «a sensação de vida» que daí decorre é tão intensa, que nós queremos que os outros sintam a mesma coisa. Kant afirma que com todos os juízos de gosto eu, para além de estar a qualificar o objecto estou também a fazer uma reivindicação, como o que sinto é tão importante quase exijo aos outros que sintam a mesma coisa. Quando se diz que X é belo, eu não espero que o outro concorde comigo mas quero que o faça, é isto que ele deve fazer, embora não haja nenhum motivo para acreditar que ele o faça. Não posso esperar que ele concorde comigo porque não há nada de objectivo em nenhuma forma que de alguma maneira arrume a questão, mas se todos compreenderam a forma todos concordarão com a beleza de X. Vemos um objecto e depois podemos virar-lhe costas porque a imagem do objecto vai permanecer, e é isso que conta, é relação entre essa imagem mental do objecto e os conceitos que se lhe tentam aplicar.
Para um comentador contemporâneo, M. Budd (crítico de Kant), Kant criou uma arte que apenas se aplica à poesia. Quase todos os exemplos de imagens que Kant fornece são retirados da poesia. Num poema é normal conseguir abstrair o que lemos e ficarmos só com as imagens desse poema. De certo modo, todas as outras formas de arte deveriam reduzir-se à poesia, que possibilita a formação de imagens estéticas. O lado material da arte é assim perfeitamente dispensável.
A relação entre a ideia estética e um conceito indeterminado é replicada na relação entre objecto físico e ideia estética. De certa maneira é a ideia estética que explica o conceito e não o contrário, tal como é o objecto físico que explica a ideia estética e não o contrário. Um exemplo desta relação é a Sabedoria, de Constantin Brancusi, exibida no Art Institute de Chicago, que consiste numa pequena estátua feita a partir de areia colada, e que representa o busto de uma mulher. A estátua está em erosão, a areia vai caindo, o que faz com que todos os dias a estátua fique diferente. Esta estátua é uma boa alusão do que é a sabedoria, nós também vamos perdendo a sabedoria, que é algo que se ganha à medida que se vai perdendo outras faculdades. Este é bom exemplo como um conceito indeterminado (a sabedoria) encontra uma bela ideia estética (um busto de mulher em erosão permanente) mas nós temos de ter acesso directo ao objecto físico para ver de facto a areia que vai caindo aos poucos para termos acesso pleno à ideia estética.      
Apesar de não haver uma determinação objectiva que permita resolver as questões sobre matéria de gosto, se mesmo assim formos capazes de chegar a um acordo aceitando todos que diante de uma determinada forma sentimos o jogo livre das faculdades, se todos sentirmos uma vivificação do ânimo perante determinada imagem, então atingimos talvez a melhor forma de identificação entre os seres humanos. Mais do que concordarmos sobre as leis científicas e políticas nós concordamos sobre as matérias de gosto, e se atingirmos esse acordo estamos a caminho de chegar à noção de ”comunidade humana”, ou seja, à compreensão do que é a humanidade. É por isto que Kant dá grande importância à ideia de uma comunidade de gosto (Sensus Comunis), isto no fundo levar-nos-ia à conclusão de que somos todos constituídos cognitivamente da mesma maneira. 

Ricardo Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário